RIO Na primavera de 1987, logo após terminar o colégio, Karl Ove Knausgård se mudou para uma vila de pescadores no norte da Noruega. O plano era simples: trabalhar durante um ano para juntar dinheiro e viajar depois, e aproveitar o isolamento para escrever. Aos 18 anos, Knausgård decidira que queria ser um escritor, com toda a bebida, o cigarro e as festas a que tinha direito. As aventuras e desventuras desse período exilado no Ártico são narradas em Uma temporada no escuro (Companhia das Letras), o quarto livro da série Minha luta. Como nos anteriores, reúne as memórias do escritor naquele ano, contando em detalhes suas malsucedidas tentativas de perder a virgindade. Tudo real. Ou quase. Knausgård já chegou ao Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa hoje ele fala na sexta-feira, às 17h15m, na Tenda dos Autores. Em entrevista ao GLOBO, o escritor fala sobre masculinidade, a relação entre a memória e a ficção e por que decidiu voltar atrás na decisão de parar de escrever, anunciada após o sexto livro de Minha luta, em 2011.
Em Uma temporada no escuro, você escreve sobre o ano que passou numa pequena cidade no norte da Noruega. Esse foi o momento em que você decidiu que queria ser um escritor. Como foi reencontrar esse jovem Karl Ove aspirante a escritor?
Eu me lembrava daquele ano relativamente bem. Na medida em que ia escrevendo, ia me lembrando das coisas. Lá, eu estava sempre escrevendo, então eu reli esses textos e me lembrei de quando eu os escrevi. É como se eu tivesse todas as idades dentro de mim e algumas fossem de acesso mais fácil do que outras. Eu acredito que, quanto mais problemas você tem e quanto mais difícil foi determinado tempo, mais fácil é para lembrar.
O livro fala sobre suas tentativas de perder a virgindade, algo bastante sensível para os homens. A masculinidade, com as questões que ela traz, é um tema sensível para você?
Esse é um tema importante em todos os livros. E as questões são diferentes em cada estágio da vida. A masculinidade tem a ver com identidade. Eu cresci nos anos 1970, quando as expectativas sobre o que era ser homem eram muito simples: você não deveria chorar ou ser sensível, deveria ser forte. Cresci nesse meio, sendo uma criança muito sensível, que chorava demais. Na adolescência, me lembro de ser chamado de menininha. Isso foi terrível para a minha identidade, para a minha compreensão de quem eu era. Porque, de alguma maneira, eu estava errado. Quando eu estava escrevendo, não queria ser representativo de nada. Eu queria explorar minha identidade. Estou sempre escrevendo sobre mim mesmo, sobre as coisas conectadas ao fato de eu ser homem. Meu interesse está na diferença entre a regra e quem você é.
Mas, quando fala de você, aborda também questões comuns a todos os homens.
Sim, mas o interessante é que os homens não falam sobre isso. Quando eu tinha 18 anos, eu não conversava sobre isso com os meus amigos. Agora, se eu tiver algum problema relativo à masculinidade ou à sexualidade, eu também não vou falar sobre isso com meus amigos. E acho que isso vale para todos os homens do planeta. Não falamos sobre essas coisas, mas você pode escrever sobre isso. Sinto que ir para lugares que em geral não falamos, como esse, é bom para a minha escrita. E eu escrevo o que eu senti.
O jovem Karl Ove falava muito de Hemingway, e tinha uma ideia sobre a vida de escritor que era bebidas, festas e mulheres. Você idealizava o que era ser um escritor?
Eu tinha uma visão muito idealizada, um sonho romântico. Para mim, com 18 anos, ser um escritor era algo como ser um opositor, um outsider da sociedade. Um escritor seria alguém completamente livre para fazer o que queria. Eu estava muito mais interessado no estilo de vida, na boemia, do que em ter alguma coisa para dizer ou alguma contribuição para a literatura. E você é assim quando tem 18 anos. É irônico que, quando você tem 40 anos e está escrevendo sobre alguém de 20, tem toda a experiência e o conhecimento acumulados entre esses anos, mas você não pode escrever sobre isso. Você tem que escrever sobre aquela quase estupidez dos 20 anos.
Com 18 anos, você se tornou professor de uma escola e tinha alunos apenas dois anos mais novos que você. Isso é algo normal na Noruega? Ou foi uma decisão excêntrica para a época?
As duas coisas. Entre os meus amigos, ninguém fez isso. Ao mesmo tempo, no norte, há cidades muito pequenas e isoladas, onde faltam professores. As pessoas não querem viver lá, e os professores preferem ir para escolas maiores em cidades maiores. Há tão poucas pessoas nessas cidades que o governo gasta muito dinheiro para manter essas áreas povoadas.
A memória é a matéria-prima de Minha luta. Você acredita que ela é uma forma de ficção?
Quando eu escrevo um romance que não é baseado em memórias é o mesmo processo criativo. As memórias estão sempre mudando, não são acuradas. Minha intenção nunca foi escrever a verdade sobre a minha vida, mas escrever a minha vida do modo como eu lembrava que ela tinha sido. Não fiz nenhuma pesquisa. Eu vasculhei a minha cabeça como se fosse um lugar onde eu pudesse, a partir dela, entrar naquele vilarejo no norte da Noruega.
Ao terminar Minha luta, você anunciou que não ia mais escrever, depois mudou de ideia. Por quê?
Minha luta tem cerca de 3 mil páginas, a única certeza que tinha é que tinha que acabar ali. Esse é um livro sobre a relação entre a literatura e a vida. Eu queria que terminasse com o escritor dizendo que não era mais um autor. Mas o que eu estava encerrando era o personagem do livro. Eu quero continuar escrevendo para além de Minha luta, tudo que publiquei foi no sentido de me afastar desse livro, mas não estou sendo bem-sucedido. Não posso escapar de mim.
O sucesso de Minha luta permitiu que você criasse a sua própria editora. Como está sendo essa experiência?
É maravilhoso. Nós temos como conceito só publicar livros que amamos e achamos que fazem diferença. O objetivo é também transformar a editora em algo social, reunir escritores e colocá-los em contato com outros da Noruega e de outros lugares. Publicamos dez, 12 livros por ano. Nós pensamos em qualidade, literatura e lucro no final. Estamos perdendo dinheiro agora, mas a situação tem melhorado a cada ano.
Quais são as suas expectativas para a Flip? É a sua primeira vez no Brasil? Você conhece algum autor brasileiro?
Estou muito animado, é minha primeira vez no Brasil e na América do Sul. O Brasil é um país mítico. Eu li um romance de um brasileiro, Michel Laub, que é muito bom, O diário da queda.