Cascavel e Paraná - A violência contra a mulher, seja psicológica, emocional ou física, permanece como uma ferida aberta em nossa sociedade. Em muitas histórias, o lar que deveria ser sinônimo de segurança e afeto se torna o palco da agressão. A figura masculina, socialmente vista como provedor e protetor, em inúmeros casos se revela o opressor e, por vezes, o algoz. Pequenos gestos de humilhação, controle e desrespeito se acumulam até culminar em tragédias que interrompem vidas precocemente, deixando famílias despedaçadas.
Nesta semana, dois casos de feminicídio voltaram a chocar Cascavel e o Oeste do Paraná, expondo o quanto as relações afetivas podem esconder riscos significativos. De um lado, uma mulher que, mesmo após poucos meses de relação, acreditava ter encontrado estabilidade e um grande amor; de outro, uma esposa com casamento consolidado. Eroni Rodrigues, de Cascavel, e Jaqueline Rodrigues Pereira, de São Miguel do Iguaçu, foram assassinadas brutalmente pelos próprios companheiros, vítimas da fúria masculina que, mais uma vez, mostrou-se sem limites e sem escrúpulos.
O caso de Eroni
Eroni, 48 anos, foi morta na última na segunda-feira (29) dentro de sua casa, no Bairro Floresta, onde vivia havia apenas dois meses com o companheiro, Valdecir dos Santos. Amigos que acompanhavam o casal nas redes sociais ficaram estarrecidos: as declarações públicas de amor contrastavam com a realidade que acabou em tragédia.
Valdecir assassinou Eroni Rodrigues com golpes de faca e bastão, tirando a própria vida em seguida, enquanto a enteada de 13 anos dormia em um cômodo ao lado. A adolescente só tomou conhecimento da tragédia quando a Polícia Civil entrou no imóvel. De acordo com as investigações, o autor já tinha duas passagens por violência doméstica contra outras mulheres. Ainda assim, conseguiu iniciar mais um relacionamento sem que a vítima tivesse acesso a esse histórico.
O crime em São Miguel do Iguaçu
No mesmo dia, outro caso veio à tona. Em São Miguel do Iguaçu, Adriano Forgiarini, de 37 anos, foi preso acusado de matar a esposa, Jaqueline Rodrigues Pereira, também de 37 anos, com um tiro na cabeça. O crime, ocorrido em 13 de setembro, foi inicialmente apresentado como assalto, mas a investigação revelou a simulação. Jaqueline estava em tratamento contra o câncer, fragilizada fisicamente, e mesmo assim foi vítima da violência do companheiro, motivada por razões fúteis.
Estatísticas alarmantes
Os números reforçam a gravidade do problema. Em 2025, a Delegacia de Homicídios de Cascavel registrou 41 crimes contra a vida: 36 homicídios, 4 feminicídios e 1 infanticídio. Já a Delegacia da Mulher contabilizou, de janeiro a setembro, 1.344 procedimentos, 957 medidas protetivas, 1.087 inquéritos instaurados, 1.011 relatados e 560 flagrantes de violência. Cada número representa uma história de dor, medo e luta pela sobrevivência.
Sociedade do “cardápio variado”: Relações rápidas, laços frágeis
A psicóloga clínica Lalucha Alves Miyahira analisou a questão sob a ótica das relações contemporâneas. Para ela, a “era dos aplicativos” de relacionamento criou uma espécie de “cardápio variado” de opções, onde encontros imediatos se multiplicam.
Hoje vive-se a sociedade do “instagramável”, onde se mostra apenas o que se quer mostrar. As relações acabam sendo rápidas, marcadas por pressa e carência afetiva. “Pode favorecer também todas essas tragédias, porque você não conhece o outro. Nem quando a gente está num relacionamento, nem quando a gente está casado há muito tempo a gente já não conhece o outro. Imagina em menos tempo até porque o outro também vai falar aquilo que a pessoa quer ouvir e aí passa por uma série de coisas”, explicou a psicóloga, lembrando da música de Marília Mendonça: “eu me apaixonei por aquilo que eu inventei de você”.
Cobrança social
Para a psicóloga, muitos relacionamentos são criados pela fantasia de querer encontrar o “grande amor”, o que também pode ser reflexo de sociedade machista, que tem uma cobrança maior sobre as mulheres, já que ela estar sozinha é “sinônimo de fracasso” ou de que ela não vai conseguir ser feliz, “condenação” que também ocorre com as mulheres que optam por não ter filhos.
“Diante disso, para que a mulher se sinta valorizada, seja vista na sociedade, ela tem que estar com um parceiro. Existe um peso do estar sozinha, principalmente numa idade 40 a mais que muitas acabam levando para o lado do fracasso”, disse. Nessa busca por um parceiro, muitas acabam caindo em armadilhas, até pelo poder de persuasão e sedução daqueles que falam “o que a mulher quer ouvir”.
Caminhos para romper o ciclo
Outro ponto destacado pela profissional é a necessidade de uma educação preventiva desde a infância. Para Miyahira, as mães devem conversar com suas filhas sobre referências de relacionamentos saudáveis e sobre a desconstrução de modelos que naturalizam a subserviência feminina. “Tem que ter muito cuidado de como vamos educar essas meninas para que elas também não caiam no ‘conto do vigário’; para que elas também possam ficar atenta a tudo isso em um relacionamento, o que pode e o que não ser permitido”, alertou.
Ela citou casos como o de uma jovem agredida com 61 socos dentro de um elevador, que já havia sido violentada anteriormente, mas não rompeu o ciclo abusivo. ““Cada um vende aquilo que quer vender e o outro se ilude achando que é daquele jeito, somado a carência afetiva, cobrança social e a autoestima baixa acabam culminando e refletindo muito nas relações. Por isso, as meninas precisam muito de orientação para poder também identificar esses perfis, conseguir diferenciar se isso serve ou eu não quero para mim. Precisa desconstruir este modelo de sociedade que a gente tem”, completou
Pergunta necessária
Os feminicídios não são “tragédias isoladas”, mas expressões da realidade que muitos querem encobrir. É nesse sentido que precisamos refletir: o agressor não nasce no vácuo, mas em uma sociedade que ainda tolera piadas depreciativas, relativiza agressões e cobra da mulher padrões inalcançáveis de comportamento.
A pergunta que se impõe é dolorosa: quantas mulheres ainda estão dormindo ao lado de seus inimigos? Quantas acreditam estar em uma relação amorosa, quando na verdade estão sob constante ameaça?