Depois de quatro dias cuidando da parturiente, uma índia yanomami já passada dos quarenta anos, e a preferida do total de cinco esposas do cacique, no interior de Roraima, nasce um menino de olhos assustados, como se estivesse me interrogando: onde estou, quem é você? Dou-lhe as boas vindas, lhe desejo boa sorte, antes de puxar para fora o restante do seu corpo. Observo, isso aconteceu no início dos anos 80, que a parturiente tem um mioma uterino, e percebo, assim, o motivo de tão prolongado trabalho de parto. Lá, nos confins da floresta, descubro o que é a sensação de solidão e abandono, aquela que dá um aperto no peito. Um auxiliar de enfermagem, no postinho improvisado da Funai, segurava a vela na madrugada amazônica. E se revessava no cuidado. Deu tudo certo, ao final.
Fico sabendo, mais tarde, que o indiozinho sadio vai receber o meu nome. É assim entre os povos originários de nosso Brasil, o agradecimento é imediato e inesperado. Moleque e formado há poucos anos, não disse, mas pensei em recomendar ao recém-nascido: procure ser feliz, e aproveite os seus dias, porque a vida é sobretudo uma aventura individual de descobertas, boa parte do tempo compartilhada, mas… um dia a solidão vai bater!
Vai bater a solidão de não ter nada mais a fazer, além de rezar e ter fé. A solidão de olhar ao redor e perceber que as pessoas se diferenciam pelo que possuem. A solidão vai bater ao perceber que muito tempo foi perdido, ou que você esteve no lugar errado e com as pessoas que não eram as que você desejaria estar compartilhando – seja no trabalho ou no convívio social. A solidão vai bater quando sentir que muitas coisas que não dependem de você serão determinantes na sua vida. Vai bater a solidão por não entender os sinais das mudanças, por chegar atrasado ou por não compreender que já era tempo para algo acontecer. Ou para se desistir dele.
Agora, cientistas concluem que o desenvolvimento da mente e da inteligência pode ser ajudado pela solidão. Entrar e estar em contato profundo consigo mesmo pode, então, ser positivo. Alguns cientistas, como Darwin, recusavam convites para eventos sociais e festividades. Alguns avanços na área da informática nasceram do autoconfinamento de seus inventores, como o primeiro computador Apple. Atendo idosos com mais de 70, 80 anos. Essa solidão talvez seja a mais doída de todas, pois vem acompanhada da limitação funcional, da dependência de terceiros. E aproximadamente 15% deles vivem sozinhos, em geral distantes de familiares. Muitas vezes por vontade própria.
Estamos vivendo mais tempo, aumentou o individualismo, cada pessoa quer viver do seu próprio jeito. A rede social de amizade, porém, se esvai com o avançar da idade. Se a solidão é o ingrediente essencial da criatividade, que muitas vezes surge em longas caminhadas, proporcionando, como ensinaram alguns filósofos, pensamentos próprios e originais, também é ela que judia, causa inatividade, ansiedade e depressão.
Quando a solidão bater, então, que venha também com a capacidade de recuperar a arte da contemplação, para compensar a hiperatividade destrutiva do nosso tempo. O indiozinho de Roraima dificilmente ficará sozinho, os yanomami estão sempre em grupos, e nunca são abandonados. Ele não precisa da dica do filósofo Byung-Chul Han, que pede que toleremos o tédio e o vácuo para que possamos desenvolver algo novo e para que sejamos capazes de nos desintoxicarmos de um mundo cheio de estímulos e de sobrecarga informativa.
Já o filósofo Francesc Torralba diz que a solidão é um espaço para executar uma auditoria existencial e perguntar o que é essencial para nós, além das exigências do ambiente social. Ele afirma que precisamos de um espaço em branco para ouvir sem interferências o que sentimos e precisamos, e conclui que “a solidão nos dá medo porque com ela caem todas as máscaras. Vivemos sempre mantendo as aparências, em busca de reconhecimento, mas raramente tiramos tempo para olhar para dentro”.
Dr. Márcio Couto – Médico Cardiologista – RM-PR 14933 – Membro da diretoria da AMC