OPINIÃO

Coluna Direito da Família

O TRISTE LEGADO DA MISÉRIA

Se Brás Cubas de Machado de Assis se alegrava por não deixar a nenhuma criatura o legado de sua miséria, existem os herois trágicos que têm o terrível fardo de contribuir com sua própria prole. Numa perspectiva próxima à “síndrome de Peter Pan” sobre a responsabilidade do cuidado, a obrigação legal (e moral) acaba ostentada como favor, juntamente com o laudo do “vírus da miséria”.

Por que não parcelar a responsabilidade como dívida do cartão de crédito? Sem considerar, claro, que o pagamento mínimo levará do rotativo ao impagável. Nesse caso, a parentalidade se assemelha a um boleto negociável, especialmente diante do talento de autoabsolvição na arte de provar o improvável: sua miséria, em nome de sua sobrevivência heroica – que resiste à “opressão” do sustento de sua prole.

O pior é que, por vezes, no Tribunal, a dramaturgia dos holerites seletivos é levada a sério, afinal quem conseguiria respirar com os valores absurdos para ostentação do cuidado infantil? “Justiça” essa nada visível nos casos de crianças atípicas que dependem de maior estrutura material, com terapias, medicamentos e adaptações. Torna-se uma negação concreta das necessidades que não podem esperar.

A engrenagem jurídica não é neutra, é lenta, dispendiosa e, em alguns casos, condescendente com narrativas de vitimização financeira. Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça reascende debates sobre a expansão da rede de corresponsabilidade ao integrar os bens e renda do cônjuge/companheiro do pagador para o cálculo da pensão alimentícia. Poderia ser um caminho plausível para finalmente reconhecer a realidade material da criança. Contudo, o curioso é a miopia seletiva que enxerga o novo cônjuge/companheiro, mas ainda está inerte à subdeclaração de renda do pagador.

Talvez, a questão esteja no desespero burocrático do próprio ser pagador que se recusa ao pleno projeto parental, de modo a garanti-lo de forma intermitente e adaptado, de forma estratégica, para custar menos. O que pode ser tolerado como mero acidente inevitável daquele que não está socialmente definido no papel de cuidado e que além de terceirizar tal atividade, sequer ousa arcar com os custos materiais.

É uma recusa da própria existência em relação ao outro. Cada justificativa criativa (embora vazia) é uma forma de dizer que essa vida não lhe pertence totalmente. Uma matemática enviesada que pode encontrar apoio jurídico e, nesse caso, a decisão terá função pedagógica na formação de uma norma cultural replicável aos casos similares. De tal forma, além de haver a perpetuação da carga desigual das responsabilidades entre os cuidadores, enfraquece a noção de sustentabilidade social e ensina desde cedo que presença e sustento podem ser negociados.

Com o talento de um contista machadiano, muitos escrevem holerites como quem escreve ficção — provando o improvável para ostentar o rótulo de vítima do “vírus da miséria”. O problema é que, quando a Justiça aceita essa narrativa, ela não apenas falha com uma criança, mas com o pacto social sobre o que significa a responsabilidade de cuidado.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito