Nesta sexta-feira, o sistema penitenciário federal fica de luto e realiza manifestações pela lembrança dos dois anos da morte da psicóloga Melissa Almeida, que atuava no presídio federal em Catanduvas e que foi assassinada, a exemplo de dois outros agentes cujas mortes a antecederam (um em setembro de 2016 e outro em abril de 2017), todas por determinação de líderes do PCC (Primeiro Comando da Capital) para desestabilizar o sistema federal de segurança.
Em entrevista exclusiva ao Jornal O Paraná, o agente federal de execução penal e representante da carreira à época dos ataques Carlos Augusto Machado fala das políticas de enfrentamento e como o sistema penitenciário reage aos crimes, mas alerta: a carreira, sem a estruturação devida, é desencorajadora e está no limbo.
O Paraná – Neste sábado completa dois anos da execução de Melissa; como lembrar a data?
Carlos Augusto Machado – No ano retrasado instituímos o Dia do Não Esquecimento. Nesta sexta-feira (24) haverá culto ecumênico na penitenciária de Catanduvas. Às 10h as sirenes serão acionadas por um minuto marcando 2 anos, 8 meses e 22 dias da execução do agente Alex Belarmino; 2 anos, 1 mês e 12 dias da execução do agente Henry Charles Gama Filho; 1 ano, 11 meses e 30 dias da execução da Melissa de Almeida Araújo. Não nos resignaremos com seu esquecimento. Não assentiremos que eles desapareçam nos dados estatísticos.
O Paraná – E como foi o primeiro impacto, a morte do Belarmino? Até ali nenhum agente federal de execução penal havia sido morto por ordem de facção no País…
Carlos – Ficamos perplexos. Nunca ignoramos ou negligenciamos os riscos dado o perfil dos presos com os quais trabalhamos. Sempre levamos em conta as chances de algum ataque a uma escolta ou algo parecido, e para isso nos preparamos. Mas para ações criminosas de caça e execução de forma sistemática de profissionais do sistema não estávamos preparados. As ações assimétricas são de índole terrorista. Demoramos para entender o que estava acontecendo. Com as investigações da Polícia Federal é que as coisas ficaram claras.
O Paraná – As investigações demonstraram que o objetivo era desestabilizar o Sistema Penitenciário Federal, certo?
Carlos – Foi. Mas naquele primeiro momento, na perspectiva do custo/benefício, não conseguíamos acessar claramente o eventual benefício que qualquer organização criminosa poderia obter com a execução de um agente federal de execução penal…
O Paraná – Os líderes das facções reclamavam da rigidez do sistema; tentar flexibilizar isso não seria uma razão suficiente?
Carlos – Nos sistemas penitenciários estaduais, com raras exceções, unidades e agentes não dispõem do mesmo aparato que dispomos no sistema federal e isso os fragiliza. Pois é esse aporte que possibilita ao SPF o cumprimento das disposições da sentença ou da decisão criminal nos termos da lei, o que se traduz na execução penal. Vou citar dois exemplos. No Sistema Federal, há um Manual de Procedimentos único para todas as unidades. Disso decorre a impossibilidade de existirem tratamentos diferenciados. Todos, de internos a agentes, estão sujeitos ao mesmo manual. O segundo ponto: as unidades federais possuem sistema de monitoramento por câmeras e portais de detecção de metais a que estão sujeitos todos os que nela ingressam, de juízes a visitas. Esse sistema possui centro de monitoramento em Brasília. Todos os espaços de circulação, como corredores e galerias, são monitorados 24 horas por dia. Qualquer alteração é imediatamente checada. E aqui chegamos ao ponto: a execução de agentes não seria suficiente para fragilizar um sistema de segurança complexo como esse. Ainda que algum agente cedesse a qualquer tipo de pressão e tentasse vulnerar esse sistema de segurança, seria detectado. Logo, a execução de agentes não traria às facções – como não lhes trouxe – qualquer vantagem.
O Paraná – E quando confirmado, qual foi a reação dos servidores?
Carlos – Quando as investigações da PF, a denúncia do MPF e a sentença da Justiça Federal demonstraram o objetivo das execuções, de desestabilizar o sistema penitenciário federal e o de intimidar agentes e servidores por meio de assassinatos, a conclusão imediata foi a mais óbvia: a de que éramos alvos de uma ação assimétrica, na qual os executores não se sujeitavam a qualquer dos parâmetros, ético ou legal, que informam o Estado Democrático de Direito. A psicóloga Melissa foi executada com dois disparos de fuzil no rosto. Foi impactante, mas sabíamos que precisávamos desenvolver uma estratégia de contraponto. Ato contínuo, passamos à análise de alguns dos expedientes empregados pelas organizações criminosas que surgiram no interior das cadeias brasileiras. Percebemos que, na perspectiva da Teoria dos Jogos, a característica predominante de suas ações se enquadra no chamado Jogo de Soma Zero, que implica na derrota, ou mesmo, na eliminação do adversário.
O Paraná – Mas isso não vem de hoje…
Carlos – Nos ataques de 2006 em São Paulo, a organização criminosa paulista foi para o tudo ou nada contra agentes e instituições do Estado, num típico jogo de soma zero, cujo objetivo era colocar o ente federativo de joelhos, submetê-lo, derrotá-lo… O surgimento da organização paulista na Casa de Custódia de Taubaté, em agosto de 1993, foi marcado pela eliminação do grupo opositor, na lógica do tudo ou nada, depois que este foi atraído para um jogo de futebol. A facção que surgia também se utilizou de um expediente que seria um novo marco em seus enfrentamentos dali em diante: utilizou a cabeça decepada de um dos oponentes como bola de futebol. Essas organizações, em seus embates dentro e fora das cadeias, continuam se utilizando da mesma estratégia contra adversários: o Jogo de Soma Zero, marcado pela demonstração ostensiva de violência, como uma mensagem de intimidação e poder. Daí tanta barbárie, tanta cabeça cortada. A partir dessa análise, buscamos formular estratégias que levassem em conta uma espécie daquilo que na teoria dos jogos se chama de Equilíbrio de Nash. Assim, manter inalterável a mais estrita, atenta e serena observação de todos os procedimentos da rotina carcerária fazia parte dessa estratégia. Uma vez desvelada a intenção, sempre consideramos com clareza que qualquer tipo de hesitação poderia implicar na fragilização do sistema e de todos os seus servidores.
O Paraná – E hoje, passados mais de dois anos da primeira execução, qual é a análise?
Carlos – Antigamente, os agentes trabalhavam sob um paradigma, o do chamado Risco Inerente. Hoje bons gestores sabem que esse é um conceito ultrapassado. A boa gestão trabalha com o conceito do Risco Residual. Ele sempre existirá, mas cabe aos gestores minimizá-los. Muitos protocolos de segurança foram aperfeiçoados, assim como os serviços de inteligência. Mas, dado ao modus operandi das facções, de índole assimétrica e se utilizando do chamado Jogo de Soma Zero, sempre estaremos suscetíveis de algum modo. Isso se aplica também à sociedade.
O Paraná – Para os agentes federais, qual é o futuro do Sistema Penitenciário Federal?
Carlos – O SPF entrega aos brasileiros um serviço público de qualidade inquestionável. Nossa missão é guarda, custódia, escolta e vigilância de alguns dos presos mais perigosos do País. E temos cumprido essa missão com louvor. Em 13 anos é zero fuga, zero rebelião, zero aparelho celular em suas dependências. Mas, infelizmente, enquanto carreira, continuamos no limbo em que se encontra o Sistema Penitenciário Brasileiro e seus agentes de modo geral: invisíveis até à Constituição da República, de índole prolixa. A CF tratou dos mais diversos temas, exceto do sistema penitenciário, e isso se reflete na falta de reconhecimento da importância desse fundamental eixo da segurança pública no Brasil. A criação da Polícia Penal seria um alento nessa narrativa.
O Paraná – Como o quê?
Carlos: A Polícia Penal poderia atuar como uma polícia da condicional. Empregando uma espécie de Inquérito Social e compondo com outros segmentos interdisciplinares, mas realizando o trabalho de campo, poderia subsidiar o juiz quanto à eficácia das penas alternativas aplicadas. Isso poderia impactar diretamente na diminuição da população carcerária, um dos grandes problemas a ser resolvido. Somos a terceira maior população carcerária do mundo e segue crescendo. Foi uma das causas para o surgimento das facções criminosas. E, por fim, é oportuno pontuar que continuamos aguardamos o reconhecimento efetivo pelos relevantes serviços prestados. Temos um plano de carreira desencorajador. Isso leva muitos profissionais a migrarem para outras esferas.
Reportagem: Juliet Manfrin