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Num país devastado, o futebol do Iraque opera milagre e sobrevive

BRASÍLIA ? A imagem de Ali Adnan, lateral-esquerdo do Udinese, da Itália, e da seleção olímpica iraquiana, com um colete militar e rodeado por soldados do exército do país correu o mundo. Ele fora visitar tropas em Mosul, terceira maior cidade do Iraque, que combatiam o avanço do Estado Islâmico. Virou símbolo da resistência de um povo. Links futebol

Quase quatro décadas de conflitos ininterruptos, o mais recente deles contra o terrorismo, devastaram um país e deixaram marcas. Natural que o adversário de amanhã a seleção brasileira seja um time disposto a lutar e a superar feridas abertas. E que, inevitavelmente, busque referências na realidade ao redor.

? O homem iraquiano é apaixonado pelo desafio. Vamos lutar pelo sucesso como nossas forças armadas têm feito nos campos de batalha. Nenhum outro time, enfrentando dificuldades como o terrorismo, a guerra e a falta de dinheiro, teria chegado aqui. Nós chegamos, jogando contra times que não viviam nada disso ? disse Hayder Najem, técnico da seleção olímpica no Rio-2016.

A caminhada desta seleção iraquiana é fonte inesgotável de histórias e experiências de vida. O time está no Brasil graças a um gol decisivo de Ayman Hussein, contra o Qatar, na casa do rival. Hussein, que não veio à Olimpíada do Rio, teve que deixar, há um ano e meio, sua casa em Kirkuk, cidade do norte do país tomada pelo EI. Seu irmão, um policial, foi capturado por extremistas e nunca mais apareceu. Em 2008, o pai de Hussein morrera, após uma explosão em um ataque terrorista assumido pela Al Qaeda.

EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS

O futebol iraquiano é quase um milagre da sobrevivência. Nas áreas controladas pelo Estado Islâmico, o jogo foi proibido e campos destruídos. Em março, um homem bomba matou 31, na maioria crianças, num estádio em Iskandraiya, a 70km de Bagdá. E, ainda assim, há resultados que beiram o inacreditável. Do time que está no Rio, há remanescentes da semifinal do Mundial sub-20 de 2013. A equipe que amanhã enfrenta o Brasil jogou melhor do que a Dinamarca na estreia olímpica, apesar do 0 a 0.

O futebol iraquiano produz milagres fora de campo, também. A classificação para a Olimpíada foi celebrada nas ruas por um povo apaixonado pelo jogo. Na festa, não havia distinção entre xiitas, sunitas ou cristãos. O elenco que chegou ao Rio tenta disseminar esta mensagem.

? Aqui há curdos, xiitas, sunitas e até cristãos. Mas, se você conviver com eles, não saberá quem é quem. Eles se dão as mãos todos os dias ? diz Karim Farhan, diretor da federação.

? Entendemos o futebol como uma mensagem moral e de amor ? emenda o treinador. Conheça todos os esportes olímpicos da Rio-2016

A paixão pela seleção é semeada à distância. A violência no país fez a Fifa proibir o Iraque de sediar partidas internacionais. O difícil, para os jogadores, é viajar e se desligar da carga dramática das notícias que chegam do país.

? Queria ver a paz restabelecida e queria poder voltar a jogar em casa ? sonha o meia Saad Abdulameer. ? O futebol é um momento de alívio do nosso povo.

Aventurar-se no país é para os fortes. Mas o olhar estrangeiro, embora demore a se habituar às condições de vida, aos poucos é tomado por uma compaixão pelo povo local.

? Trabalhei em clubes locais. As viagens são perigosas, há casos de jogadores assassinados, campos destruídos. Vi jovens perderem familiares e largarem o futebol para lutar no exército. Você não pode deixar o medo te dominar e precisa viver. Em Arbil, o Estado Islâmico se colocou a 30km de mim. No campo, ouvíamos aviões de guerra passando, havia risco de bombardeio ? conta o espanhol Gonzalo Rodríguez, preparador físico do time olímpico. ? A devastação só aumenta a vontade de alegrar as pessoas.

Técnico do Iraque entre 2011 e 2012, Zico morava no Qatar, mas suas idas a Bagdá eram tensas. Diz ter vivido uma de suas fases mais duras.

? É tudo sitiado, hotéis sem janela, fechadas com madeira. Fui visitar os Jardins da Babilônia e era uma escolta de quatro carros, segurança. É difícil viver assim. Eles têm ótimo biotipo e é incrível como há jogadores técnicos. Mas a estrutura foi destruída. Caso contrário, disputariam muita coisa.

A capacidade de amar o futebol mesmo num cotidiano tão violento é capaz de cativar gente como o meia Fernando Cardoso, 25 anos, baiano de Ilhéus, jogador do Naft Maysan.

? Quando chegou a proposta, eu e minha família nos assustamos. Mas vivo bem, numa área pacífica. Pena que, como o governo paga os salários, os valores caíram muito. Os investimentos se voltaram para os armamentos ? diz. ? Não vivi grandes sustos. Só um tiro para o alto na arquibancada.