Esportes

É tudo nosso

Como assim? A cerimônia de abertura dos XXXI Jogos vai começar dentro de algumas horas, e eu não saí do lugar. Continuo no mesmo país. Pela primeira vez desde 1980 não precisei fazer malas e pousar na pantagruélica bolha olímpica montada em alguma terra estrangeira. É a Olimpíada que veio até onde estou. Tudo muito estranho. E novo.

Começo a perceber que nas edições anteriores sempre pude deixar para trás meu dia a dia de bípede urbano comum, antenado apenas na cobertura esportiva. Era fácil: quem mergulha na bolha dos Jogos Olímpicos longe de casa não recebe contas de IPTU nem chamadas de telemarketing. Problemas na família são resolvidos por quem ficou, e notícias sobre as mazelas do Brasil soam menos aterradoras. Na Olimpíada de 1992, sequer o auge do processo de impeachment contra o presidente Fernando Collor disputou minhas atenções com as competições em Barcelona.

Agora, ao contrário, é tudo uma coisa só. A bolha olímpica deixou de ser impermeável. Nela se infiltra o dia a dia brasileiro, o noticiário dos distúrbios nas ruas de Natal, o andar melancólico do impeachment de Dilma Roussef. A caminho de uma arena posso cruzar com um futuro encrencado na Lava-Jato ou com um funcionário público afundado em salários atrasados.

Preferiria não ter de explicar a colegas da mídia estrangeira patologias já detectadas na construção e infraestrutura dos Jogos. Elas me causam desalento não como jornalista, mas como parte da população brasileira.

Em contrapartida, se esses 17 dias de competições forem o que merecem ser — estupendos — meu alívio particular terminará em júbilo. Se tudo for tão supimpa como a minissaga da vela brasileira, ilustrada na travessia da tocha entre Niterói e o Rio, com gerações de iatistas do clã pioneiro Torben-Schmidt, o sucesso está garantido. Foi impecável, emocionante. Apenas senti falta do plantel completo no comboio: de Marcos Soares, ouro juvenil em 1980, ao veterano multimedalhado Robert Scheidt, esperança tenaz na classe laser para 2016.

Apesar de ser esta minha décima cobertura olímpica, percebo-me mais irrequieta do que muitos dos 5670 atletas homens e 4830 mulheres de 206 países que competirão no Rio. Como diz o chavão dos chavões, é como se fosse a primeira vez. Por ser no Brasil.

Embora o evento desta noite não valha medalha, é a Cerimônia de Abertura que imprime o tom e a alma a cada edição dos Jogos. Lembro da de Seul como insossa. A de Los Angeles foi informal; a de Pequim, pesadona; Sydney, reveladora.

A festa atua como cartão de visitas global endereçado a bilhões de telespectadores, e seus ingressos são sempre os mais disputados da programação oficial. Em 2016 não foi diferente: eles se esgotaram com a velocidade de um Usain Bolt planando na pista de atletismo.

Quatro anos atrás, na festa de encerramento em Londres, o Rio gerou algum desconforto quando fez a apresentação de praxe como próxima cidade-sede. Por sorte ela foi breve e teve a atuação travessa do gari passista Renato Sorriso. A aparição magnética do rei Pelé, sempre uma garantia de aclamação para qualquer público, também ajudou a minimizar o conjunto, que de resto foi equivocado e salpicado de clichês.

Em compensação, para esta noite, está previsto algo memorável — um talentoso e criativo autorretrato da nação brasileira, capaz de transformar o Maracanã lotado em 78.838 mil participantes espontâneos.

O aguardado espetáculo constitui a parte artística da cerimônia de abertura, seguida do programa obrigatório e protocolar dos Jogos – desfile das delegações, içar da bandeira olímpica, juramento do atleta, discursos, acendimento da pira. Mas mesmo quando o show artístico é ótimo, como foi em Londres, trechos tediosos nunca faltam, pois a apresentação costuma durar uma eternidade. O desafio maior dos organizadores está em entreter sem cansar demais o público. E, sobretudo, em tentar domar a ambição criativa dos diretores. Em Pequim, por exemplo, fomos servidos com cinco milênios de história da China — espetáculo grandioso, inigualável, porém acachapante.

David Goldblatt, autor do indispensável “The Games: Global History of the Olympics”, recém-lançado em inglês, define a noitada de gala como um “estranho amálgama de ritual global, marcha militar, megashow de TV, musical da Broadway e circo”. Para os Jogos de Londres-2012, ele publicou um breviário sobre o protocolo olímpico da cerimônia de abertura.

Goldblatt sugere que os três breves discursos de praxe que se seguem ao longo desfile das nações podem ser aproveitados para uma rápida ida à lanchonete ou ao banheiro. Observação mais do que oportuna para as 30 edições anteriores dos Jogos, mas pouco realista para o Rio de 2016. Qual o brasileiro que haverá de levantar da cadeira justo num dos momentos mais aguardados da noite, em que política e poder estarão expostos à vaia nacional?

Numa sexta-feira 13 de 2007, o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, improvisou um drible no protocolo para abreviar o coro de vaias que impediu Luiz Inácio Lula da Silva de declarar abertos os Jogos Pan-Americanos da tribuna de honra. Apesar de, à época, o país ser chefiado por um presidente eleito ainda popular.

O protocolo desta noite é mais rígido, sem escapatória possível. Fosse Dilma a titular no exercício do cargo, ou sendo ele Michel Temer, vaias haverá, ecoando uma nação em desassossego. Prometem ser ruidosos, e parecerão intermináveis, os cerca de dez segundos da única fala reservada ao chefe do Estado anfitrião: “Declaro abertos os Jogos do Rio, celebrando a 31ª Olímpiada da era moderna” . O desfile das delegações é a única oportunidade para cada atleta apresentar-se em igualdade de condições com os demais competidores. Única e última, pois a partir de amanhã de manhã o início das 303 disputas nas 43 modalidades esportivas começará a revelar quem é quem.

No garboso desfile, todos se parecem, a ponto de ser difícil reconhecer os grandes astros quando enfiados nos estranhos uniformes nacionais criados só para a noite de gala. Como visualizar um Michael Phelps de boina bretã em meio às centenas de atletas americanos que envergavam o uniforme Ralph Lauren (fabricado na China) criado para os Jogos de Londres?

Phelps, por sinal, sempre se resguardou do cansativo desfile pra poder conquistar suas 22 medalhas olímpicas. Não só ele. Boa parte dos campeões mundiais com provas decisivas marcadas para a manhã seguinte optam por ficar fora da festa de abertura. Preferem deixar os folguedos públicos para a cerimônia de encerramento, com as vitórias já asseguradas.

O general americano George Patton, um medalhado não do esporte, mas da guerra, dizia que a conquista suprema da vida é a glória, mais escorregadia, breve e fugaz do que a fama ou a fortuna. Patton tinha razão. Alguém pode ter uma vida inteira marcada por fama e fortuna, e a glória lhe escapulir, pois ela é dependente de uma rara soma ideal de circunstâncias.

Essa equação foi ressuscitada tempos atrás pelo comentarista esportivo Roy Firestone. Ele escreveu que a felicidade do atleta é saber o que quer, e sucesso é conseguir o que decidiu querer. Sua glória seria a experiência única de querer e desfrutar do que alcançou.

Felizmente, há uma gradação infinita nessa escala, já que mais de dois terços dos atletas olímpicos voltam para casa sem qualquer medalha. O velocista americano Lennox Miller, dono de uma prata pela Jamaica em 1968 e um bronze em 1972, sabia das coisas. Nos Jogos de Atenas-1996, acolheu nos braços a filha Inger, que acabara de perder um lugar no pódio na final dos 200 metros, por uma diferença ínfima de 0,03 segundo. Estava inconsolável. “Você é a quarta melhor de um mundo de quatro bilhões de pessoas, filha!”, lembrou-lhe o pai. Dois dias depois Inger estava entre as quatro americanas que ganharam o ouro no revezamento 4 x 100m.

Entre as coisas que aprendi desde os Jogos de Moscou é que nem sempre vence o melhor, e sim quem está mais bem preparado no dia, hora e instante preciso de sua prova olímpica. E que no final das contas, como diz Goldblatt no final livro, os Jogos continuarão a ser caóticos, únicos, maravilhosos, incompreensíveis, marcados por doping, caos, falcatruas e interesses — porém imperdíveis.

Graças aos atletas.