DOHA ? O chamado para a quarta oração do dia ecoa dos alto-falantes das mesquitas pelo mercado popular árabe Waqif, um dos últimos grandes resquícios da cultura qatari em Doha. Já é quase noite na capital. Do outro lado da cidade, um cenário contrastante ganha forma. Arranha-céus ultramodernos começam a ser cobertos de luzes coloridas, misturando-se a hotéis cinco estrelas à beira-mar. Quase invisível no mapa, essa pequena península do Golfo Pérsico se divide entre precariedade e ostentação, tradição e modernidade.
As imponentes torres, lojas de grife e shoppings, no entanto, escondem uma outra face do Qatar que nada tem a ver com o título que o país ostenta de mais rico do mundo ? considerando PIB per capita. O emirado tem a quinta maior concentração de trabalho escravo proporcional à sua população, de acordo com o Índice de Escravidão Global 2016. Isso equivale a cerca de 30 mil pessoas, a maioria sujeita a trabalho forçado no setor de construção.
Com a descoberta do petróleo e do gás natural nas décadas de 1940 e 1970 , respectivamente, o país saiu de uma condição paupérrima para se tornar uma potência econômica com bilhões de investimentos em todo o mundo. Obras faraônicas emergiram do deserto, às custas da mão de obra barata de boa parte dos imigrantes, que compõem quase 80% de um total de 2,5 milhões de habitantes no emirado. A maioria da população ? 60% ? vive em campos de trabalho.
Qataris ganham casa após casamento
A virada na economia proporcionou aos qataris uma vida de fantasia, com benefícios quase inimagináveis oferecidos pelo governo. Funcionária do Ministério das Relações Exteriores, Aisha al-Khulaiti, de 28 anos, é uma das muitas mulheres que andam de Mercedes pela cidade. Assim como todo qatari, ela e o marido, depois de se casarem, ganharam do Estado um terreno e mais 1,2 milhão de rials (US$ 340 mil) para construírem a sua casa. O casal e o restante da população não pagam imposto de renda ? paraíso fiscal, o Qatar é um dos países com as taxas de imposto mais baixas do mundo.
? Antes não havia praticamente nada aqui. A economia baseava-se na extração de pérola e pesca. Meu avô era pobre. As condições foram melhorando, e a minha geração é a que mais usufrui dessa abundância. Todo qatari tem direito a saúde e educação de graça ? relatou Aisha, carregando uma bolsa Gucci que ela diz ter custado cerca de US$ 1 mil.
Aisha mal saiu da casa dos pais e já conta com a ajuda de duas empregadas, que representam o outro lado do retrato social qatari. A ?importação? de domésticas no país é uma prática bastante comum. Existem até agências com catálogos, nos quais são detalhados o perfil da funcionária, incluindo foto e informações como nacionalidade, religião, idiomas, peso, habilidades e número de filhos.
Vindos de países asiáticos e africanos ? muitas vezes em condições de extrema pobreza e conflitos ?os imigrantes veem no Qatar a oportunidade de terem uma vida mais digna, mas acabam se submetendo a outros problemas como restrição da liberdade e condições deploráveis de trabalho.
Como parte do contrato, as empregadas têm direito a 15 dias de férias por ano e precisam pedir permissão para deixarem o país a seus contratantes, que detêm o controle de seus passaportes. Além disso, a mudança de emprego exige uma carta de transferência, ironicamente chamada de ?carta de alforria? por alguns.
A filipina Asria Tuloganan, de 45 anos, deixou quatro filhos para trás quando saiu do país, há duas décadas. Ela trabalhou como empregada em Abu Dhabi e Cingapura antes de se mudar para Doha. Duas de suas filhas acabaram seguindo os mesmos passos.
? No vilarejo onde nasci, não tem nem água encanada. Fiz isso para ajudar a minha família. As minhas duas filhas mais velhas também vieram para cá e trabalham como domésticas. Os meus netos não me chamam de avó. Um dia eles vão crescer e entender que é para o bem deles ? justificou Asria, que manda todo mês 90% de seu salário para os parentes nas Filipinas.
Enquanto a remuneração inicial de um qatari gira em torno de US$ 4 mil e US$ 5 mil, segundo Aisha, domésticas e trabalhadores da construção civil recebem bem menos ? cerca de US$ 300.
? Diversas vezes vi qataris em lojas com as empregadas atrás só para segurarem as suas bolsas ? observou a brasileira Leila Martinez, que é guia em Doha.
A situação dos imigrantes veio à tona após denúncias de jornais internacionais e de ONGs de direitos humanos, que acusaram o país de manter trabalho escravo e forçado ? pelo menos 1.200 trabalhadores envolvidos na construção dos estádios e em obras de infraestrutura para a Copa 2022 morreram, segundo estimativas não confirmadas pelo governo.
ONU exige mudança de regras
Em março, a ONU deu um prazo de 12 meses para o Qatar acabar com a prática ou enfrentar investigação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que pode abrir caminho para sanções internacionais. A OIT constatou a presença de imigrantes sem salário por meses e desprovidos de seus passaportes. Os alojamentos também foram criticados: ?Não satisfazem os parâmetros mínimos, com a maioria das acomodações abrigando até 12 trabalhadores por quarto pequeno e instalações precárias.?
Em resposta à última denúncia da Anistia Internacional, o governo do emir Tamim bin Hamad al-Thani argumentou que a investigação da ONG baseia-se em apenas quatro empresas das mais de 40 envolvidas na construção do estádio Khalifa. O país prometeu introduzir uma nova lei ainda este ano para melhorar a situação dos trabalhadores.
* A repórter viajou a convite do governo do Qatar