SÃO PAULO. A Associação de Procuradores do Estado de São Paulo criticou nesta quarta-feira a anulação de condenações pelo massacre do Carandiru, em que 111 detentos foram mortos por forças policiais em outubro de 1992. A decisão também foi criticada por entidade de direitos humanos
Em nota enviada à imprensa, o diretor da associação de procuradores, Marcelo de Aquino, lembra que o Estado é responsável pela integridade física dos presos. Segundo ele, os fatos noticiados e comprovados ?dão absoluta certeza? de que houve ?o deliberado assassinato pelas forças policiais de 111 detentos? no presídio.
?Não enxergar o óbvio é de uma insensibilidade e inconsequência danosa ao Estado Democrático de Direito?. Segundo o diretor, ?essa decisão praticamente representa um salvo conduto às autoridades policiais para que continuem atuando com a mesma truculência com que agiram os policiais do caso Carandiru. Está mais do que na hora de desmilitarizar a polícia?, reagiu Aquino.
O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu, na terça-feira, anular os quatro julgamentos que condenaram 73 policiais militares pelo Massacre do Carandiru. .
Segundo a ONG Conectas, de direitos humanos, a decisão ?é uma afronta ao direito de reparação e responsabilização?.
O argumento de que a polícia agiu em legítima defesa, afirma a ONG, não encontra respaldo nos fatos, ?públicos e notórios?, d houve massacre, de que os presos estavam rendidos e encurralados nas carceragens.
?Enquanto ao menos 111 presos desarmados foram mortos durante a ação, a maioria com tiros na cabeça e pelas costas ? um claro sinal de execução ? um policial apresentou ferimento, causado por estilhaços de uma TV que levou tiros dos próprios policiais?, publicou a ONG em sua página numa rede social.
?A decisão reforça a impunidade de crimes cometidos pelo Estado e legitima a violência que pauta a atuação das polícias contra as populações mais vulneráveis. Além disso, demonstra que o Poder Judiciário não serve igualmente a todos e que, na prática, opera como órgão violador de direitos humanos?, disse a nota.
Para a Anistia Internacional, a anulação dos julgamentos ?pode significar um enorme revés da justiça brasileira no caso mais emblemático de violação de direitos humanos ocorrido no sistema penitenciário do país?.
A entidade lembrou que familiares e sobreviventes esperaram mais de 20 anos pelo julgamento dos autores das 111 mortes ocorridas, ?o que já mostra uma enorme falha do sistema de justiça criminal brasileiro?.
?É muito grave que esse caso corra o risco de ficar impune e nenhuma autoridade do Estado de São Paulo e nem os policiais militares que participaram da ação sejam responsabilizados?, completou a anistia.
? A decisão é constrangedora e vergonhosa ao País. Constitui-se numa verdadeira afronta à luta pela efetivação dos Direitos Humanos no Brasil. A decisão abre ainda mais precedentes para a ampliação dos já altos índices de violência e letalidade nas ações policiais em São Paulo e no Brasil, sob o falso argumento de ?legitima defesa?. O Tribunal de Justiça de São Paulo está chancelando o recrudescimento da violência policial e a impunidade decorrente desses crimes ? declarou Ariel de Castro Alves, do Movimento Nacional de Direitos Humanos, advogado que acompanhou os julgamentos dos PMs.
A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo gerou divergências na comunidade jurídica. Para os desembargadores da 4ª Câmara Criminal de São Paulo, responsáveis pela decisão, não há elementos capazes de demonstrar quais foram os crimes cometidos por cada um dos agentes.
Para o criminalista César Caputo, o Estado também errou na apuração do crime. ?Não se sabe por que não foi feita a devida perícia balística nas armas dos policiais e nos projéteis encontrados nos corpos dos detentos, uma grave falha. Dessa forma, fica prejudicada a autoria, a individualização da conduta de cada policial militar?, salientou.
A falta de comprovação de autoria dos disparos, no entender do criminalista e constitucionalista Adib Abdouni, mostra que a situação ocorrida no chamado ?massacre do Carandiru? teve ?panorama totalmente caótico?. Segundo ele, a decisão da 4ª Câmara do TJ-SP foi totalmente acertada.
?Se os julgadores tivessem agido de modo diverso, teria havido injustiça, já que a tipicidade dos delitos e a autoria não puderam ser especificados com precisão. Além disso, o princípio in dubio pro reo, que significa que, na dúvida, decide-se a favor do réu, também garante que a decisão do TJ foi acertada, já que as provas não foram robustas e capazes de provar quais foram os crimes cometidos por cada um dos agentes?, afirma o criminalista, em nota divulgada nesta terça-feira.
O criminalista Fernando Augusto Fernandes concorda que não se pode criticar o Tribunal de Justiça pelo fato de a corte entender que a prova não é segura para individualizar as condutas dos policiais. Mas critica o fato de o mesmo entendimento não ser usado também quando os acusados não são servidores públicos.
?Há presunção de inocência também para agentes do Estado. Mas o que se esconde na decisão é a admissão de que o direito é um self-service normativo, aplicando a norma de forma diferente a depender do réu. Ou seja, enquanto enchemos as cadeias por meio de processos falhos, os agentes do Estado que abusam do poder permanecem imunes?, afirmou em nota.