RIO – Em um dia qualquer no ano de 1967, entre o quintal e a escola, Nathercia Lacerda, então com 9 anos, decidiu escrever para o ?Tio? Paulo, um parente querido que tinha se mudado para Santiago, a capital do Chile. Ela não sabia o motivo da viagem, nem conhecia o país vizinho. Mas percebia a movimentação dos adultos provocada a cada chegada de correspondência à casa localizada no bairro da Urca. Nathercinha, como era chamada, não sabia que o ?tio? Paulo era famoso, muito menos perseguido pelos militares que tinham tomado o poder três anos antes. O primo da sua mãe, a quem ela chamava de tio, era o educador Paulo Freire, criador de um método de alfabetização que reverberou no mundo todo e um dos mais influentes pedagogos do século XX.
Entre 1967 e 1969, quando Freire viveu exilado no Chile com a mulher e os filhos, eles trocaram cinco cartas. Nathercia guardou os papeis por décadas e nunca tinha pensado em publicá-las num livro. Apenas em 2012, ao falar da correspondência para a amiga e pesquisadora Cristina Porto, a ideia apareceu. Cristina chamou outra pesquisadora, Denise Gusmão, e, com o apoio da dupla, Nathercia escreveu ?A casa e o mundo lá fora ? Cartas de Paulo Freire para Nathercinha?, com ilustrações de Bruna Assis Brasil (Zit Editora, 88 páginas, R$ 47,90).
OBRA QUE CONTA HISTÓRIA DA FAMÍLIA
Não se trata de um livro de correspondência tradicional, mas uma obra que conta a história da família, das cartas e do Brasil daqueles anos a partir dos olhos de uma criança; no caso, Nathercinha.
? A Cristina e a Denise me falaram muito da importância de publicar essas cartas, mas eu nunca tinha pensado nisso. Ao lermos juntas, percebemos como o Paulo ia me falando do mundo, da importância de estudar, de manter a criança que eu era junto comigo na vida adulta. Nas cartas, ele aparece como alguém que mantinha o menino vivo dentro dele. Era um acadêmico que escrevia como tio, mas sem deixar de ser um educador ? conta Nathercia.
A autora não lembra do que escreveu nas cartas para o ?tio? Paulo (?deve ter sido sobre minha rotina de menina, coisas comuns?), mas guarda vivas na memória as recomendações de sua mãe quando escrevia para ele. No envelope, Nathercia era obrigada a trocar o destinatário.
? Toda vez, minha mãe dizia o nome que eu tinha que escrever no envelope. Eu questionava por que não podia colocar o nome dele, mas ela só dizia ?porque aí ele não vai receber?. Havia um mistério que me intrigava e também me encantava. A casa estava sempre cheia de gente. Eu sentia uma tensão, mas não compreendia.
Nathercia e Freire se reencontraram após sua volta do exílio e conviveram por muitos anos. Para a autora, que também é educadora, o livro é um modo de manter sua memória viva:
? É uma forma de reavivar a memória e o trabalho dele, mas a partir de um outro olhar. É ele, que sempre escreveu sobre adultos e alfabetização de adultos, se dirigindo para as crianças.