Opinião

Coluna Direito da Família: União nas nuvens

Os ritos formam tempos com significados, diferindo da rotina, para que as coisas tenham presença de espírito. Essa foi a lição dada pela raposa ao Pequeno Príncipe, mas que data do início da história da humanidade: a importância dos ritos, das formalidades. Atualmente, é comum ver o nariz torcido e as reclamações sobre as solenidades, com um suspiro de “essa burocracia…”.

Simplificam-se, assim, as formalidades, em nome da felicidade instantânea e fugaz, que está há um toque de tela. Os indivíduos sequer querem discutir prazos e metas, basta um clique para alcançar à vida perfeita das redes sociais. Não se tem mais a pausa para apreciar os detalhes, nem tempo para os ritos.

A redução do número de divórcios anunciada como um balanço do ano precedente não reflete a durabilidade do matrimônio, mas antes o aumento de relações que dele se diferem. De fato, cresce consideravelmente a famosa “união das escovas de dentes”: a união estável, haja vista a simplificação na sua constituição e, em muitos casos, para dissolução.

No entanto, a simplicidade entra em rota de colisão com regras jurídicas a partir do momento em que a Lei Maior equipara casamento e união estável, com a facilidade em sua conversão. É imperiosa a maestria jurídica e interpretativa para alcançar essa disposição legal, até mesmo porque a própria conversão só era simplificada em tese.

O Direito, com seu papel de regulamentação social, tem seu lastro na formalidade, de modo a precisar de instrumentos de flexibilidade para alcançar relações informais, a fim de garantir a dignidade humana. Quase como se fosse papel do Direito garantir a felicidade, algo tão subjetivo e etéreo.

Dessa forma, no ano de 2022, houve profundas alterações na legislação sobre os Registros Públicos, ganhando notoriedade a alteração de prenome extrajudicial. Com essa lei, também sofreu impacto a união estável, garantido, por exemplo, a conversão desta em casamento sem a necessidade do crivo judicial.

Além do mais, é possível a “aplicação de efeitos retroativos”, mesmo sem reconhecimento judicial, pelo procedimento de certificação eletrônica perante o oficial de registro civil. Este poderá declarar a precedência da união estável, com a apresentação de provas robustas, como filhos em comum, contas conjuntas, dependência em plano de saúde, previdência ou imposto de renda. Contudo, é possível comprovar o relacionamento, inclusive, pelo compartilhamento de plataforma de streaming. Isso mesmo, a divisão da conta da Netflix pode ser indicativo para a comprovação da união estável, especialmente quando os indivíduos podem não só ter a cabeça nas nuvens, mas dados e arquivos também.

As referidas alterações estão em consonância com a digitalização das relações sociais na atualidade pós-moderna. E embora tantos aspectos sejam pouco compreensíveis e nada palpáveis, cumpre ao Direito proteger os aspectos inerentes aos indivíduos.  E esta, portanto, é principal finalidade das formalidades e dos ritos: proporcionam segurança em meio ao caos, estabilizam o incansável ciclo natural de mudanças, em quaisquer circunstâncias.

Hodiernamente, os ritos perdem tenacidade e tornam-se fluídos, mas ainda respiram, com dificuldade, por sua importância social e cultural. Afinal, quando cativas, torna-se eternamente responsável.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas