Opinião

Coluna Direito da Família: Limites à liquidez do afeto

Em meio às festividades de final de ano, urgem as discussões sobre os aspectos afetivos e familiares; e isso fica claro nas piadas e reflexões nas mensagens das redes sociais, que vão desde as uvas no arroz, na ceia de natal, até os jargões sobre o “tio do pavê” ou “tia dos namoradinhos”. Isso se deve à manutenção das tradições familiares, desde os tempos remotos, para garantia das estruturas familiares.

As pressões sociais e, especialmente, familiares eram fundamentais para estabilidade da estrutura microssocial denominada família. Daí porque cada indivíduo, dentro dos rituais familiares, assume um papel que deve encenar com maestria, pelo bem da família tradicional. Ocorre que houve uma profunda transformação, especialmente nas últimas décadas, no que diz respeito às formações individuais e familiares. Embora viva-se na era da diluição do indivíduo na cultura de massa, dá-se ênfase às particularidades, relacionadas à intimidade, como forma de valorização da dignidade humana.

Neste ínterim, o afeto torna-se elemento balizador das relações afetivas, de modo que a família deve se construir a partir do amor, da confiança e da responsabilidade afetiva, sendo que desta relação emanam efeitos sociais e legais. Certamente o elemento biológico continua em vigência, mas ganha espaço o amor como viga mestra da família.

Por esse motivo, as relações entre pais e filhos, outrora assentadas exclusivamente na autoridade parental, detêm novos contornos, a fim de considerar o afeto e a consequente responsabilidade. Embora os filhos não devam ser os senhores do reinado do lar, também não podem ser objetos, usados a bel prazer de seus genitores. Existem direitos que devem ser garantidos com absoluta prioridade aos menores, desde os basilares, como alimentação, saúde e moradia, até o direito à felicidade, com o adequado desenvolvimento da personalidade.

Contudo, as obrigações derivadas das relações afetivas e familiares não se restringem às relações parentais. Ainda que os relacionamentos afetivos e conjugais tenham ganhado fluidez, na medida em que se possibilitaram arranjos diferentes do matrimonial com garantias legais, existem limites impostos pela legislação e mesmo pela ética interpessoal. Assim, a falta de comprometimento do “amor líquido”, aventado pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman, encontra alguns limites, ainda que escassos.

Não se pode, certamente, obrigar o compromisso, pois seria absurda intromissão do Estado na esfera de privacidade do indivíduo. Contudo, quando a “liquidez” está atrelada à má-fé para o ganho indevido de vantagens pecuniárias, está apresentada uma conduta ilícita e tipificada, portanto, punível, denominada “estelionato emocional”. Nesse caso, o indivíduo se usa da confiança e da afetividade para aplicação de golpes, os quais detêm requintes de crueldade, visto que trazem dor e trauma às vítimas, além da culpa e da vergonha.

Resta à vítima, nesse caso, a judicialização da questão para buscar reparação pecuniária pelos danos materiais e morais, além de aplicação de sanções penais. Provavelmente a exposição da intimidade, em vista do alcance da justiça, pode trazer revitimização, o que se torna entrave à persecução judicial desse tipo de conduta. A punição, cível ou penal, serve como mecanismo de responsabilização legal e reparação dos danos causados, além de medida educativa ao indivíduo e à sociedade quanto às regras de conduta, inclusive, afetivas.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas