OPINIÃO

Afeto nu e cru

Havia uma “estória” de que a Mentira e a Verdade saíram a caminhar no campo quando resolveram se banhar em um riacho. Ambas se despiram e entraram na água, quando a Mentira decidiu sair à espreita e vestir-se com as roupas da Verdade. Quando esta saiu do riacho, negou-se a vestir as roupas da Mentira e saiu nua a persegui-la, sendo condenada como despudorada pelas pessoas que a viam (embora acolhiam tranquilamente a Mentira com as vestes da Verdade). As pessoas não engolem a verdade nua e crua, mas acolhem a mentira travestida de verdade.

Na obra “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley, escritor britânico, a sociedade alcança sua verdade pela repetição: “sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade”. Trata-se de uma forma de condicionamento que foi utilizada, inclusive na campanha nazista, quando a mentira mil vezes contada se torna verdadeira. Enquanto as “fake news” são repetidas aos milhares, em diversos grupos de whatsapp, a verdade encolhe-se em poucas vozes que ainda ousam contá-la.

Senso comum

O senso comum, assim, costuma disseminar inverdades e sua repetição costumeiramente prejudica os mais vulneráveis, que já não sabem sobre seus direitos. Nesse sentido, muito se fala sobre parentalidade (vale para maternidade e paternidade, além de outros elos de parentesco) socioafetiva, mas muitas dúvidas remanescem. Essa forma de parentalidade diz respeito à criação do vínculo pai/mãe e filho, por meio do afeto – não há vínculo sanguíneo tampouco o procedimento de adoção. É a relação que define o parentesco e suas consequências jurídicas.

Existem boatos de que sua previsão legal está presente no projeto de reforma do Código Civil, pois não haveria disposição expressa em lei. Contudo, o atual Código Civil abre espaço para essa forma de parentesco quando o define por “outra origem”, além do natural e civil. Por isso, os Tribunais têm reconhecido esse vínculo, especialmente de filiação.

Mas, contrariamente ao que se dissemina repetidamente, esse elo não nasce do acaso. Não basta um relacionamento amoroso entre pai/mãe e madrasta/padrasto para que esta(e) passe a ter obrigação com relação ao menor. Essa inverdade prejudica, majoritariamente, mulheres-solo que detêm a preponderância dos cuidados com relação aos filhos e se veem limitadas por uma eventual obrigação do padrasto.

Voluntariedade

Padrasto e madrasta somente se tornam responsáveis diretamente pelo menor caso haja voluntariedade com correspondência do outro lado, quer dizer, ele(a) deve agir como pai/mãe – chamando o menor de filho, tratando como filho e que publicamente possa ser compreendido como genitor(a) – e o menor também deve vê-lo(a) como pai/mãe.

Reconhecimento este, inclusive, que deve ser publicizado por decisão judicial ou em registro público (apenas aos maiores de 12 anos). Assim, a relação, expressamente declarada, deve ser pública, contínua e duradoura (sem tempo especificamente determinado – o que vale é a intensidade do afeto).

Após esse reconhecimento, então, poderão existir os efeitos decorrentes da relação de parentesco, como alteração de registro, inclusão de sobrenome, direito de guarda e convivência, obrigação de prestação alimentar. Porém, vale lembrar que cada caso é único e não se pode criar uma verdade absoluta e simplista sobre tema tão complexo.

“No seu quadrado”

O fundamental nesse ponto é considerar a relação entre o afeto e os aspectos pecuniários. Se o desejo é de constituição de uma família, vale o velho ditado de que pai é quem cria. A liberdade nas escolhas traz consigo as responsabilidades, especialmente com alguém que confiará absurdamente no amor que lhe é entregue. Se o desejo, porém, é apenas uma relação amigável, mas “cada um no seu quadrado”, então, o padrasto/madrasta não deverá assumir o sustento da criança, nem chamá-lo de filho, o que não impede um relacionamento saudável entre ambos.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito