Cotidiano

O mais sólido registro dos ?anos de chumbo? no Brasil

RIO ? O que nas redações da década de 80 era chamado de ?o livro do Elio? só começou a se materializar quase duas décadas depois, quando, em fins de 2002, a coleção ?Ilusões armadas? foi inaugurada com dois volumes (?A ditadura envergonhada? e ?A ditadura escancarada?), aos quais se juntariam ?A ditadura derrotada? e ?A ditadura encurralada?. O ?livro do Elio? na verdade eram quatro, e agora chega o quinto.

Naquelas redações, enquanto alguns não acreditavam que o ?livro do Elio? um dia seria lançado, tanta a demora, comentava-se que tudo estava baseado no mítico ?arquivo do Golbery? (general Golbery do Couto e Silva, um tipo de militar intelectual e refinado, de alta patente, modelo que desapareceu do mapa), fundador do não menos mítico Serviço Nacional de Informações (SNI).

Batizado de ?Feiticeiro? por Elio, Golbery, defensor da distensão política ?lenta, segura e gradual?, iria empreender essa tarefa histórica com o ?Sacerdote?, general Ernesto Geisel. Os dois, egressos do primeiro governo da ditadura militar, do marechal Castello Branco, perderam os embates do início do regime com a ?linha dura?, mas voltariam ao poder com a unção de Geisel para suceder a Médici, o símbolo do período mais violento do regime.

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Geisel não era contra tortura e mortes, apenas não queria que a ?tigrada?, habitante dos ?porões? da ditadura, rompesse a hierarquia nos quartéis. A ?tigrada?, o ministro do Exército Sylvio Frota à frente, pagou para ver as cartas de Geisel e Golbery, perdeu a parada, Frota vestiu o pijama mais cedo, e a abertura vingou.

O conjunto da obra de Gaspari, o mais sólido testemunho dos ?anos de chumbo?, não é mera transcrição do arquivo de um poderoso prócer do regime militar. É muito mais do que isso.

Alguns trabalhos prodigiosos começam nada ambiciosos. No caso do ?livro do Elio?, o marco inicial está em quando este italiano de Nápoles, desembarcado no Rio com 5 anos, na companhia da mãe, e futuro militante de carteirinha do ?Partidão? (Partido Comunista Brasileiro), chegou a Washington em 1984, na condição de bolsista do Wilson Center for International Schollars, para três meses de estudo.

Talentoso, o jovem Elio se iniciou numa máquina de escrever em uma redação no jornal do PCB, ?Novos Rumos?, depois passou pela agência de notícias que rastreava passageiros ilustres que transitavam pelo Galeão, a SIG. Fez uma escala na coluna de Ibrahim Sued, onde continuou a se adestrar em busca de notícia, até ser contratado pela ?Veja?, na qual cumpriu carreira vertiginosa. Foi a Washington já como editor adjunto da revista, após ter sido editor de política.

Havia acabado o governo Geisel, acompanhado nos intestinos por Elio. Antes, no período em que ?Sacerdote? e ?Feiticeiro? caíram em desgraça, Gaspari estabelecera boa relação pessoal com os dois, bem como com Heitor Aquino Ferreira, capitão, tradutor de George Orwell (?A revolução dos bichos?) ? também já houve capitães tradutores no Brasil ?, secretário pessoal de Golbery e depois do próprio Geisel.

Elio Gaspari

Gaspari chegou a Washington com o projeto de produzir no Wilson Center um ensaio sobre como Geisel e Golbery viabilizaram o projeto de abertura política. Não mais que cem páginas. Mas, ao chegar por volta da 30ª, percebeu que a empreitada exigiria mais espaço. Seria um livro, ideia estimulada pela instituição americana. Escreveu cinco.

No ano seguinte, veio o impulso definitivo para o ?livro do Elio?: Heitor Ferreira confiou-lhe 25 caixas cheias de papéis, quase esquecidas na garagem de um sítio de Golbery em Luziânia, Brasília. Pediu a Gaspari para preservar o material. Junto, uma preciosidade ainda maior: 300 horas de fitas gravadas. Os papéis ? havia de tudo, bilhetes, agendas, anotações avulsas, atas de reuniões do Conselho de Segurança Nacional etc. ? eram passados por Golbery ao secretário Heitor. Mas Heitor não fazia qualquer triagem, guardava tudo numa caixa de papelão sempre presente embaixo da mesa. Já as fitas foram gravadas, por ideia de Heitor e Golbery, com o consentimento de Geisel, nas conversas que o presidente indicado manteve com candidatos a ministros e quem o visitava nos dois escritórios que usou antes de tomar posse: no Jardim Botânico e num outro prédio do Ministério da Agricultura, já derrubado, no Largo da Misericórdia, na região da Praça XV. Nenhum interlocutor de Geisel sabia que estava sendo gravado.

CUIDADO COM O ACERVO

Há várias joias, mas duas das mais preciosas deste acervo de grampos são conversas individuais de Geisel com companheiros de farda ? general Vicente de Paulo Dale Coutinho, primeiro ministro do Exército do futuro governo, e o tenente-coronel Germano Aroldi Pedrozo, chefe da sua segurança ?, em que se confirma que o sucessor de Médici sabia que se torturava e se matava naquele tempo, início da década de 70. Achava aquilo inevitável. O regime, afinal, estava em jogo. Porém, mais tarde, ele e Golbery tratariam de domá-lo e o seu braço de repressão, que se tornara autônomo. Abriram as portas para a ?distensão lenta, segura e gradual?.

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Para os quatro livros iniciais, foram feitas pesquisas incontáveis, também nos Estados Unidos. Pelo menos cinco centenas de livros foram lidos por Elio. Fez entrevistas, consultou muito papel. O ?arquivo do Golbery? e as fitas foram copiados, digitalizados, e repousam em vários lugares seguros. O cuidado com o acervo também ajudou no relançamento dos livros em versão e-book, com recursos de multimídia.

Foi possível relatar, por exemplo, com a ajuda de um oficial do Exército combatente na Guerrilha do Araguaia, como guerrilheiros foram presos, fuzilados e incinerados com a técnica do ?micro-ondas?, usada tempos depois por traficantes em morros do Rio. Colocados os corpos dentro de pilhas de pneus, eles eram incinerados, com um método que chega a converter DNA em fumaça. Pelo ?livro do Elio?, pode-se ainda seguir a trajetória do capitão do DOI-Codi, órgão de repressão política e centro de torturas, Aílton Guimarães Jorge. O oficial entrou no desvio, deu segurança a contrabandistas usando viaturas do Exército, foi preso, também torturado ? uma ironia ?, e por isso se livrou de uma condenação pela Justiça Militar. Depois, assumiu a identidade do bicheiro Capitão Guimarães, patrono do samba.

Com o quinto volume, o ?livro do Elio? fecha o ciclo histórico da instalação de uma ditadura inicialmente envergonhada, passando por diversos estágios, até a redemocratização, mais de 20 anos depois. Há dentro dele, na verdade, vários livros.