RIO – É uma banca de jornal como outras tantas, aço galvanizado, vitrines laterais, balcão pequeno. Mas Paulo Roberto Dias Lustosa, de 58 anos, seu arrendatário desde 2014, vai logo botando banca. ?Quiosque cultural?? ou ?célula transitória?? ou ?ponto de referência??, assim ele a define. A si mesmo, define como marchand e livreiro. De segunda a sexta, das 10h às 20h, Paulo dá expediente na banca em frente à Academia Brasileira de Letras (ABL), na calçada da Avenida Presidente Wilson. Vende livros e revistas usados, pinturas e gravuras de nomes mais vistos em galerias e coleções. Junto com o engraxate Batista, o Bar Academia e a Casa Villarino, seus vizinhos, forma a tétrade que cristaliza um pedaço do Centro carioca de outros tempos. Na semana passada, conforme contou a coluna de Ancelmo Gois, um amigo que revira o subúrbio do avesso fez parar em suas mãos outro naco deste Rio: o álbum de formatura do Curso Normal do Colégio Silvio Leite, de 1936. Nele, duas fotos saltam das páginas ainda precedidas de papel de seda: a da escritora Clarice Lispector e a de sua irmã Tania, formandas daquele ano na escola da Tijuca. Depois de espalhar a aquisição entre pessoas do meio literário, ele conta que recebeu ofertas e já estuda as propostas.
Paulo é desses tipos que o Rio quase não produz mais. Carismático, bom frasista, amigo de todo mundo, do carteiro ao imortal. Além dos livros, das revistas e dos quadros, guarda na banca algumas garrafas de uísque, que, depois do fim do expediente no entorno, regam conversas sobre cultura, religião, política, futebol.
? Aqui se discute de tudo, só não pode radicalizar ? avisa o livreiro, que interrompe a frase para cumprimentar um funcionário da ABL que passa: ? Muito bom mesmo o ?Zero??, do Umberto Eco. Valeu pela dica.
A primeira vez que Paulo entrou na ABL foi bem antes de vir a ser vizinho. Leitor voraz, ele diz, já assistia a palestras por lá. Foi no vaivém delas que bateu o tino para o potencial da banca, que jazia fechada há cinco anos.
? Achei que seria uma vitrine cultural ? diz ele, que também ganha seu pão com checagem de autenticidade e aferição de valor de objetos de arte. (Quando segue estes rumos, deixa a banca aos cuidados de uma das filhas, Bruna, de 21 anos, estudante de Museologia, e Sophia, 18, aluna de Arquitetura).
Paulo devora, principalmente, ?pré-socráticos e poesia??. Augusto dos Anjos, Rimbaud e Mário Faustino. Por este último, é um apaixonado. Jornalista, crítico literário e poeta, Faustino nasceu em Teresina e foi criado no Rio. Em 1962, aos 32 anos, estava dentro de um Boeing da Varig que partiu do Galeão com destino à Cidade do México e caiu perto de Lima, no Peru. Deixou apenas um livro publicado, ?O homem e sua hora?? (Livros de Portugal, 1955). Paulo tem a primeira edição, ?livro 127, meu xodó??:
? Fui criado no meio de livros. No começo eu sofria quando vendia um livro ou um quadro de que gostava muito, mas a gente tem que sobreviver…
Sobreviver dos quadros e gravuras é mais difícil, as vendas são mais esparsas. Mas Paulo afirma já ter comercializado um Athos Bulcão dos anos 50, cujas negociações começaram na banca e terminaram em Ipanema. Seu acervo ainda guarda algumas obras de nomes brasileiros, como uma tela do gaúcho Vladimir Machado e uma litografia do surrealista Darcílio Lima (1944-1991).
Alguns xodós o livreiro guarda para si mesmo. São títulos autografados pelos próprios autores, principalmente membros da ABL: Antônio Torres, Ferreira Gullar, Arnaldo Niskier…
? Ele é um alfarrabista e marchand sempre em busca de obras perdidas no tempo, entre as quais verdadeiras raridades, como me aconteceu semana passada, ao ver em sua banca um quadro de Samson Flexor, o que acabo de relatar para o filho dele, o psicanalista e músico André Flexor, em casa de quem estou hospedado, em Paris. Além de um achador de preciosidades, gosta de contar histórias engraçadas, o que por si só pede uma paradinha diante da sua banca ? conta o escritor Antônio Torres, por e-mail, de Paris.
?LIVROS RETRÔ? E CULTURA
O diplomata, ensaísta e acadêmico Sergio Paulo Rouanet também dá suas paradinhas por lá:
? Ele vende livros retrô, é amigo dos acadêmicos. Nunca comprei lá, mas penso que quem se interessa por cultura deve ser valorizado.
Paulo diz que os acadêmicos compram pouco, mas admiram.
? Uma vez, o Bechara (o gramático Evanildo Bechara) me encomendou uma biografia do Marques Rebelo (pseudônimo literário do jornalista carioca Eddy Dias da Cruz). Demorei, mas consegui pra ele ? lembra.
Edições raras de ?Os sertões??, de Euclydes da Cunha, estão difíceis de achar em sebos, feiras e espólios garimpados por Paulo. Segundo ele, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Agatha Christie são os mais procurados entre seus cinco mil títulos. Apesar do pouco tempo no ramo de livros raros, Paulo já sente efeitos da crise. Talvez por isso a banca ande tão eclética: de ?30 anos de Sambódromo, o maior espetáculo da terra?? ? com fotos dos banqueiros do jogo do bicho Anísio Abraão David, Capitão Guimarães, Luizinho Drumond e Carlinhos Maracanã ? a volumes dos códigos Civil e Penal. O livro mais barato custa R$ 5. O mais caro, ele não comenta:
? Costumo dizer que resisto porque insisto.
Paulo também é discreto sobre os bastidores da ABL:
? Tem muita história divertida e curiosa. Mas não quero falar. Seria indelicadeza.