Curitiba – Em um país formado essencialmente por migrantes e refugiados, com uma característica que fica muito mais evidente na Região Sul do Brasil com a vinda de europeus de forma mais intensa no século 19, a chegada de muitos estrangeiros, mais recentemente da Venezuela, despertou um novo olhar sobre esses povos que buscam uma nova vida.
A crise enfrentada pelo estado de Roraima, que não estava preparado para essa acolhida, onde se estima que somente no último ano tenham entrado pelo menos 50 mil venezuelanos, deu início a um processo de interiorização do envio de muitos deles para outros cantos do Brasil, pondo o Paraná numa espécie de rota de acolhimento.
A chegada de um grupo de 60 pessoas nessa semana a Goioerê deve ser apenas a primeira de uma série que deve se intensificar nas próximas semanas e meses. A região oeste, com sua característica de empregabilidade com vagas sempre constantes em frigoríficos e cooperativas, deve se manter em evidência nesse processo.
Ocorre que, além de receber esses migrantes, o Estado também quer saber quantos refugiados, apátridas e migrantes já estão por aqui uma vez que nesse momento nenhuma entidade tem uma dimensão precisa.
Uma parceria firmada no fim do mês de julho entre a Seju (Secretaria de Estado da Justiça) a partir do Departamento de Direitos Humanos, do Centro Estadual de Informação para Migrantes, Refugiados e Apátridas e o Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná deu início a esse censo, que deve ser concluído em outubro deste ano.
Essas instituições contataram pelo menos seis entre as maiores entidades que atuam nas acolhidas, destaque aqui para a Cáritas, a Pastoral do Migrante e associações, que replicarão os questionamentos a entidades menores direta ou indiretamente ligadas a elas. Sabe-se, por exemplo, que esse também será um recorte e não representará um número com precisão, mas dará um diagnóstico mais próximo do que existe hoje.
Segundo a coordenadora do Centro Estadual ligado à Seju, Maria Tereza Uille Gomes, os números da Polícia Federal também serão levados em consideração nesse levantamento e o objetivo é entender onde essas pessoas estão e quantas elas somam. O foco, além de saber uma proporção mais próxima da realidade estadual, é pensar em políticas públicas que possam ir ao encontro dessas pessoas, tanto no sentido da recepção, quanto na inserção à sociedade com acesso à saúde, à educação e ao trabalho.
“Não podemos esquecer que essas pessoas deixaram suas casas, suas famílias, seu país de origem. Devemos recebê-los bem porque somos um Estado formado por migrantes. Além disso, temos características de migração com muitos brasileiros que também foram embora. Se todos os brasileiros fizessem o caminho inverso e voltassem para o Brasil também enfrentaríamos algumas dificuldades em estrutura pública. Tudo isso é uma questão humanitária”, reforça a coordenadora do Centro.
1,5 mil cadastros
Somente considerando as pessoas que mantiveram contato com o centro, desde sua implantação, em outubro de 2016, foram cerca de 1,5 mil cadastros e quase 5 mil atendimentos de gente de 40 diferentes nacionalidades.
A maioria dos cadastros ainda é de haitianos, que somam cerca de mil. Vale destacar que a passagem pelo centro não é obrigatória. Esses contatos geralmente ocorrem quando esses migrantes precisam de auxílio para regularizar documentos, colocar os filhos na escola e seguir para o mercado de trabalho. O grupo recém-chegado a Goioerê, por exemplo, não teve nenhum tipo de intermediação com a Seju que hoje possui apenas estrutura em Curitiba.
“Ali foi um contato realizado entre o governo federal, a prefeitura local, a entidade que os acolheu e as Nações Unidas. A coordenação do Departamento de Direitos Humanos foi ao aeroporto recebê-los e colocar a estrutura à disposição do grupo, mas não fizemos intermediações nesse caso”, reforçou Maria Tereza Uille, ao lembrar que não se tem um diagnóstico de quantos mais devem chegar na sequência.
Venezuelanos
Entre os venezuelanos que passaram pelo centro nesses dois anos, integram a lista 97. “A maioria está em Curitiba e Região Metropolitana, já está no mercado de trabalho, inserida à sociedade, as crianças na escola, todos vieram com vacinas já tomadas ainda na Região Norte do Brasil e dos que foram atendidos aqui, não vemos um movimento indicando que queiram voltar [para o país de origem], por enquanto”, destacou Maria Tereza Uille Gomes.
Com o censo em curso, o centro pretende expandir suas ações e reforçar a parceria com as entidades que atuam na linha de frente à recepção destas pessoas em todas as regiões do Paraná.
A esperança que se chama Cascavel
Há quase dois anos em Cascavel, o barbeiro Rafael José Mendoza, a esposa e os quatro filhos agora vivem momentos de mais tranquilidade. Fugiram de uma Venezuela empobrecida durante a intensa crise financeira. Mas se hoje estão em paz, é porque atravessaram um longo período de dificuldades: “Em um primeiro momento não tínhamos como vir todos. Só agora que estamos juntos novamente”, comemora, ao lembrar dos filhos que haviam ficado para trás.
Feliz com a vida que leva por aqui, Rafael não esconde a saudade da terra-mãe. “Quem sabe um dia, se as coisas melhorarem por lá, nós voltaremos”, sonha.
Desde que pisou no Brasil como imigrante, o barbeiro de 45 anos tinha certo que teria Cascavel como seu destino. Isso porque ele tem parentes na cidade, mas, para chegar até aqui, fez o caminho romeiro que seus compatriotas têm feito. Entrada pelo Norte do Brasil para só então chegar ao Sul. Tem conhecimento da chegada de mais venezuelanos à região, mas diz ainda não ter estabelecido contato com eles.
Colocado em um emprego por indicação desde que chegou à cidade, ele trabalha numa barbaria conceituada. Os dois filhos mais velhos, de 22 e de 20 anos, também já conseguiram emprego. Os de 17 e de 7 anos estudam e ficam na companhia da mãe, cuidando do lar.
Mas o processo de recomeço desta nova vida não tem sido fácil. Rafael, a esposa e os quatro filhos abandonaram a casa própria e deixaram para trás parentes e amigos. Marcado pela saudade dos que e daquilo que ficou, ele agora firma os pensamentos na família que está unida mais uma vez. “Fomos bem recebidos e estamos reconstruindo a vida. Gostamos daqui e vivemos uma realidade muito diferente da que vivíamos lá”, reforçou.
O barbeiro Rafael chegou há quase dois anos e só agora conseguiu reunir toda a família (Foto: Aílton Santos)
O papel da Igreja
Instituições parceiras imprescindíveis para o acolhimento de refugiados, apátridas e migrantes, a Cáritas e a Pastoral do Migrante estão se estruturando para essa nova realidade de acolhimento à região. Na arquidiocese de Cascavel, segundo o arcebispo dom Mauro Aparecido dos Santos, tanto Cáritas quanto a Pastoral estão se orquestrando para estabelecer o papel de cada uma delas nesse processo.
De imediato, além do atendimento direto dessas pessoas nas cidades, têm ocorrido orientações para encaminhamento do processo legal de documentação. “Até o momento atendemos poucos venezuelanos e a nossa estrutura ainda está bastante voltada para o acolhimento dos haitianos, tanto é que a nossa secretária na Cáritas é haitiana, justamente por enfrentarmos dificuldades com a língua, agora nos preparamos para esse novo momento de acolhimento com a chegada dos venezuelanos”, destacou.
Para o arcebispo, é fundamental acolher bem essas pessoas sem esquecimento das raízes. “Na região, a maior parte das pessoas é descendente de migrantes, de refugiados da 2ª Guerra Mundial, acolher bem essas pessoas é um dever nosso. Todos temos isso nas nossas origens”, reforçou.