RIO – O engenheiro alemão Sven Schmid não poderia imaginar, mas um trâmite burocrático mudaria sua vida: ao ter de sair do Brasil para renovar seu visto de trabalho, ele decidiu viajar de bicicleta de Buenos Aires até o Peru. Só parou dez meses e quase 22 mil quilômetros depois, em Calgary, no Canadá. Essa longa jornada sobre duas rodas e sob o céu das Américas está detalhada no livro ?300 dias de bicicleta?, lançado este ano pela Edições de Janeiro.
A pedalada começou em 26 de outubro de 2010 na capital argentina e terminou em 6 de agosto de 2011 na terceira cidade mais populosa canadense. Entre uma e outra, uma sucessão de desertos, cordilheiras, florestas, praias, vilarejos e metrópoles compõe o mosaico de paisagens das Américas do Sul, Central e do Norte, por 14 países diferentes. Carregando consigo apenas o essencial, como a barraca e o saco de dormir onde passou a maioria das noites, além de um diário e da câmera fotográfica, que guardam uma bagagem que não pesa quase nada mas é a mais valiosa em viagens como esta.
? Especialmente no deserto, quando pedalei vários dias consecutivos quase sem encontrar nenhuma pessoa e quase sem falar, eu precisava guardar os meus pensamentos e emoções que tinha durante o dia, escrevendo. Se você pedala o dia inteiro, vê tanta coisa, a cabeça acumula tantos pensamentos e ideias, e à noite, sempre sentia um ?congestionamento? que eu precisava relaxar, escrevendo no diário ? conta Schmid com o bom português de quem já trabalhou no Rio e em São Paulo.
Desde que freou pela última vez sua companheira de viagem, batizada de Stefanie, Schmid voltou a viver na Alemanha. Nascido na região de Stuttgart e hoje residente nos arredores de Munique, ele se surpreendeu com as paisagens naturais, bem diferentes das de seu continente natal.
? Nasci e cresci na Europa Central, numa região populosa, onde, em geral, os lugares ou são cultivados, ou florestas ou cidades. Não estou acostumado com o vazio da estepe ou do deserto, como encontrei no norte da Argentina ou no Altiplano da Bolívia. Mas adorei também o contraste entre aquela solidão na natureza e as cidades vivas americanas ? descreve o viajante, cujo distanciamento também permitiu que pontuasse no livro espantos negativos, como problemas ambientais, má distribuição de renda e violência urbana e nas estradas.
ENTRE OS PERIGOS E AMIGOS DA ESTRADA
O planejamento inicial era pedalar de Buenos Aires ao Peru em algumas semanas. À medida que os quilômetros se acumulavam, e a burocracia da renovação do visto para o Brasil não se resolvia, Sven Schmid acrescentava novos planos. Por que não ir até o Equador? E que tal esticar à Colômbia? Até que, em um café na Costa Rica, a cidade de Calgary apareceu como destino final para a viagem de quase 300 dias. Para Schmid, a liberdade de definir o roteiro e como ele seria cumprido é um dos pontos altos do cicloturismo.
? O melhor de viajar de bicicleta é que se passa por lugares que normalmente nunca iria conhecer. Não sei quantos vilarejos eu visitei, mas ainda lembro bem de alguns deles, como Realicó, a uns 600km de Buenos Aires, onde fui acolhido de maneira muito carinhosa por professoras e alunos de uma pequena escola pública. Eles até plantaram uma árvore em minha homenagem, está lá até hoje. Também tenho muitas lembranças dos vilarejos do Peru, da Colômbia e do México ? relembra o alemão que, por sua nacionalidade, pelas roupas de ciclista e pelo fato de estar atravessando o continente pedalando, se acostumou em ser alvo de curiosidade. Até entrevistas para emissoras de rádio e TV ele deu pelo caminho.
Schmid se lembra também que a hospitalidade americana, do sul ao norte, se manifestava até mesmo de onde menos se esperava, como em postos de controle de fronteira. Sempre aparecia gente disposta a ajudar e oferecendo teto, comida e água. ?Não sei como essa gente seria recebida na Alemanha?, questiona em determinado momento do livro, ao recordar de uma família no interior do Equador, que além de lhe dar pernoite, fez questão de levá-lo a um churrasco. Também conseguiu abrigo em um quartel do corpo de bombeiros na costa californiana.
A viagem também reservou momentos tensos, como os desencontros com o barqueiro que faria a travessia da Colômbia ao Panamá, um período doente na Costa Rica, a perigosa ?Carretera de la Muerte?, entre Coroico e La Paz, na Bolívia, e um mapa errado que o fez pedalar a esmo no Salar de Uyuni, e as duas vezes em que o quadro de alumínio da bicicleta quebrou. A violência cruzou seu caminho algumas vezes, como em um inesperado encontro com um suposto criminoso no Equador, ou a vez em que precisou de escolta policial em um trecho no norte do Peru, onde assaltos a ciclistas eram frequentes. Além dos riscos que qualquer pessoa corre em metrópoles latinas:
? Fui assaltado na Cidade do Panamá, mas consegui fugir. Em La Paz, tive documentos roubados. Apesar dessas experiências, só tenho lembranças boas das mais de mil pessoas que encontrei.
Entre essas pessoas estavam ciclistas como ele, com quem trocava informações, descobria novos roteiros e quebrava a rotina silenciosa.
? Depois de dias de solidão eu precisava conversar, compartilhar pensamentos, impressões e objetos. Duas vezes troquei mapas com outros ciclistas ? conta, lembrando que chegou a pedalar uma semana com um grupo de quatro franceses e três semanas com dois americanos.
Essa ?irmandade sobre duas rodas? é encontrada nas chamadas ?casas de ciclistas?, residências ou albergues onde viajantes sobre rodas podem passar a noite com mais conforto sem pagar. Mas, em geral, os pousos de Schmid eram na beira de estradas, só com a barraca e o saco de dormir, esquentando a comida no pequeno fogareiro que carregava na bicicleta.
BRASIL E ÁSIA NOS PLANOS
Entre 21.935 quilômetros que pedalou pelas Américas, alguns dos mais marcantes foram na Rodovia Panamericana, um ícone para viajantes de todo o mundo. ?A sensação de estar andando pela famosa Panamericana acelera a minha pulsação. Fico emocionado só de ler a placa de indicação?, descreve Sven Schmid no livro, sobre sua viagem pelo litoral chileno.
Na outra ponta da viagem, os parques nacionais dos Estados Unidos também merecem destaque. Calgary, na província de Alberta, no Canadá, aliás, só entrou no roteiro por estar do outro lado da fronteira do National Glacier Park, em Montana, famoso pelos picos das Montanhas Rochosas, entre eles o do Monte Logan, a 2.026 metros de altitude.
A jornada de bicicleta pelas Américas foi a mais longa da vida de Sven Schmid, mas não foi a primeira nem a última. Aos 15 anos, na companhia de um amigo, ele atravessou a Alemanha pedalando. Na Europa, ele já se aventurou do ponto mais ao norte do continente (Nordkapp, na Noruega) até a fronteira com a Ásia, na Turquia. De volta à rotina dos pedestres em seu país natal, espera conseguir tempo para pedalar por todos os continentes. Um roteiro que deseja fazer um dia é o da Mongólia à China.
Apesar de ter rodado por 14 países americanos e ter morado no Rio e em São Paulo, Schmid nunca viajou de bicicleta pelo Brasil. Está nos planos, mas considera uma aventura ainda mais difícil:
? Para mim o clima no Brasil seria um desafio grande; a temperatura e a umidade altas, especialmente no Nordeste e no Amazonas. Uma dificuldade também seriam as grandes distâncias entre cidades, já que se tem que levar muita comida e água. O planejamento das etapas fica mais difícil do que numa área mais populosa.
O QUE LEVAR NA BIKE
Peças – Schmid levou ferramentas e peças de reposição, como um pneu, três câmaras, duas correntes, engrenagens, 20 raios, dois freios, muitos parafusos e cabos de freios e marchas.
Bagagem – Roupas (adaptadas aos climas) foram nos alforjes, as bolsas laterais colocadas sobre as rodas. Barraca, saco de dormir, colchonete isolante térmico, fogareiro, panela pequena e medicamentos.
LIVRO
?300 dias de bicicleta?. Autor: Sven Schmid. Edições de Janeiro, 211 páginas. R$ 49,90.