O principal programa ativo de cooperação cultural entre Portugal e Brasil foi lançado no Rio de Janeiro, no início de maio de 2016. Trata-se da Biblioteca Digital Luso-Brasileira, produto de um acordo de cooperação firmado em 2014 pelas Bibliotecas Nacionais de Portugal e do Brasil.
A nova biblioteca reveste-se de forte dimensão simbólica: a origem da Biblioteca Nacional brasileira decorre, afinal, da magnífica Real Biblioteca portuguesa, trazida por ocasião da transferência do Estado português para cá, entre 1808 e 1821. É como se agora a Biblioteca brasileira retornasse a Portugal e, ao mesmo tempo, Portugal retomasse a transferência de seus acervos bibliográficos para o Brasil.
Cada uma das duas instituições coordena em seus países a redes importantes de acervos digitais, o Registo Nacional de Objectos Digitais (RNOD), em Portugal; e a Rede Memória Virtual Brasileira. Ambas reúnem cerca de 60 instituições, entre bibliotecas, arquivos e museus.
Nos últimos três anos, a Biblioteca Nacional brasileira, além de cuidar da infindável faina da recuperação patrimonial, por meio de obras e restauros e de exposições de seus acervos, tratou de expandir suas atividades digitais. Iniciada há dez anos, na gestão de Muniz Sodré, a BN Digital hoje abrange um conjunto significativo de acervos compartilhados, tais como a Brasiliana Fotográfica Digital, em parceria com o Instituto Moreira Salles e o projeto da Brasiliana Iconográfica Digital, em associação que inclui ainda a Pinacoteca de São Paulo e o Instituto Itaú Cultural
Pôr a Biblioteca Nacional ao alcance dos brasileiros foi uma cláusula pétrea seguida nesses últimos três anos. O direito à livre expressão cultural exige igual prerrogativa quanto à suplementação cultural. Com frequência, tendemos a associar política cultural à expressão cultural, fixada em marcadores identitários idênticos a si mesmos. Há que suplementar tal expressão, por meio da troca cultural e do acesso à cultura erudita e literária. Pôr a Biblioteca Nacional na vida dos brasileiros é, ainda, um ato de resistência às marcas de recessão cultural presentes nas taxas de leitura e de alfabetização plena no país.
A Biblioteca Nacional não pertence a governos, sempre temporários. Ela exige, por certo, atenção governamental, mas requer que se leve a sério o fato de que é dimensão permanente do Estado brasileiro. Na verdade, sua mais antiga instituição.
Este é um país que, por acidente feliz, recebeu em 1808 uma grande biblioteca europeia e decidiu mantê-la em 1825, como item do novo Estado que então se criava. Retenhamos esse belo mito de origem. Mitos tanto podem servir para fixar tradições quanto para obrigar a pensar se estamos à altura daquilo que proporcionam. Que o laço restabelecido com a Biblioteca Nacional portuguesa dê força e sobrevida à percepção do quanto nossa integridade civilizatória e força reflexiva dependem de instituições como a Biblioteca Nacional do povo brasileiro.
Renato Lessa é cientista político e foi presidente da Biblioteca Nacional