Cotidiano

Crítica: em seu melhor romance, André de Leones mostra país em trânsito

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RIO – O suicídio assombra o quinto romance do goiano André de Leones. Não é fácil viver e morrer em Goiás. No interior, na capital, em qualquer lugar. Cristiano é o protagonista-câmera de ?Abaixo do paraíso? (Rocco). Sempre na companhia dele, o leitor tentará encontrar o propósito de viver. Durante uma semana, de segunda a segunda. E somos todos ? protagonista, personagens e leitores ? fugitivos de um assassinato involuntário.

Se o início é titubeante, quando ainda não temos certeza se a escrita continuará sendo pura pose, com seus cortes supostamente bacanas, aos poucos o narrador nos fisga. Impõe ritmo com capacidade ímpar de cavar atmosferas desoladoras. Apartamentos mal ajambrados, velhos quartos de hotel e de motel, bares vazios. Roupas mofadas, cinzas pelo chão, tapetes surrados. São tristes os cenários urbanos, mesmo dentro da modernidade de Brasília.

O autor de ?Dentes negros? escreve livros que conversam entre si. A trama roteirizada parece ter como partida e destino a cidade da infância, a pequena Silvânia. O que está enraizado? Primeiro, a narrativa da memória que trabalha entre o flashback fluente e o presente pegajoso. Entram aí as histórias que constituem uma comunidade mínima e provinciana: fofocas, boatos, ouvir dizer, reconstituir casos da vida alheia em detalhes nem sempre verificáveis.

No paraíso terreno, goiano e infernal, a amizade e o sexo são componentes de redenção. O imaginário bíblico está por todos os lados. No título, na epígrafe colhida em Jó, no nome do pai (Lázaro), na volta do filho pródigo à casa paterna. Nossa personagem principal vive ?dias de aflição? entre Goiânia, Anápolis, a capital federal e Silvânia. Deambula, esbarra em outras solidões e dialoga (sem falsear) para contar parte da cultura do Centro-Oeste brasileiro.

VIOLÊNCIA PONTUAL

?Abaixo do paraíso? traz também elementos de narrativa policial, quase sem querer. Os crimes estão ligados à política estadual, o que dá um toque de atualidade ao romance. A violência pontual do protagonista entra em contraste com a brutalidade ignorante que o autor enxerga como traço regional. No olhar antropológico, há espaço pra uma sensibilidade de paixões e amores exagerados. Sim, o Centro-Oeste não se dá a compreender com facilidade.

No retorno à família, inclusive em relação carnal proibida, Cristiano encontra conforto. Está longe dos lugares onde se bebe demais, onde se corre demais. Na manhã do último dia, pai, madrasta, meia-irmã, Cristiano e melhor amigo comem juntos o milho transformado em pamonhas. Comunhão. Todos contam histórias. De amigos que se mataram e que morreram em alta velocidade. São sobretudo confissões, acertos de conta com o passado.

André de Leones, 36 anos, hoje morador de São Paulo, é capaz de misturar tempos narrativos de forma, na maior parte das vezes, sutil. Tem um ótimo timing para diálogos, com raras derrapagens. Encontrou no cerrado sua paisagem inspiradora, seu tronco retorcido e vivo. Mistura urbano e rural para dar conta de um país indefinido, em trânsito, ainda tosco e já antenado. Como seu personagem principal, desfere chutes intuitivos que tomam rumo certeiro.

?Abaixo do paraíso? é seu melhor livro. Recorda o pequi. O leitor estranha, aproxima-se desconfiado, vê o amarelo vibrante, sente o cheiro forte, lambe o fruto, acaricia. E aprende, pela linguagem de um narrador prodigioso, que não deveria morder. A isca estará sempre a uma distância perigosa. Chegar ao caroço significa dor, sombra, morte simbólica. Daí a necessidade inerente de escapar. O autor foge até de retratar Brasília como a cidade da sujeira política.

O romance transcorre nesse fio entre o prazer da carne e os espinhos (dor lancinante na língua e no céu da boca), entre uma cultura previsível e a incerteza envolvida no risco de partir. Abocanhar o pequi é uma forma de suicídio. Por enquanto, a deriva. Por quê? A resposta está no começo e no final do romance, reverberando a canção: ?Ainda é cedo?, diz o jovem Cristiano. Ainda é cedo para morrer. Nunca tarde para ler.