RIO – Para o empresariado brasileiro, os últimos meses deixaram a sensação de que o dinheiro secou. A captação de recursos com investidores, por meio de títulos de dívida e ações, despencou e deve fechar o ano no menor volume desde 2004. Diante de uma avalanche de calotes e renegociações de débitos, os bancos restringem empréstimos. O BNDES ? que financiou 11,2% do investimento privado em 2015, segundo o Centro de Estudos de Mercado de Capitais do Ibmec (Cemec) ? passa por um processo de transição do qual sairá menor e mais seletivo, afirmam especialistas. Enquanto isso, para financiar seu crescente déficit orçamentário, o governo federal aumentou a emissão de títulos públicos. Os juros altos e o baixo risco desses papéis, considerados imbatíveis no mercado, atraem fatia cada vez maior de investidores e dificultam as emissões privadas.
O quadro é pouco auspicioso para um país cuja taxa de investimentos caiu a 16,9% do tamanho da economia no primeiro trimestre do ano, a menor taxa em 21 anos. Segundo especialistas, o capital evaporado impõe ao Brasil a necessidade de solucionar desequilíbrios crônicos, tarefa que passa pela redução de juros, a democratização do acesso ao mercado de capitais ? para os analistas, hoje ele funciona como um clube exclusivo para grandes corporações e bancos seletos ? e a adoção de modelos de concessão e parcerias público-privadas que sejam atraentes ao capital privado.
Um número ilustra o desequilíbrio na relação de forças entre empresas e governo. Levantamento do Cemec mostra que o setor público, incluindo estatais, foi responsável por 72% do fluxo de dívida no mercado doméstico no fim de 2015. Embora trate-se de um indicador volátil, o nível foi o maior em pelo menos dez anos. Isso acontece porque as empresas estão captando menos recursos, e o setor público, mais. Segundo dados da Anbima, associação que reúne entidades do mercado financeiro, as companhias levantaram R$ 110,37 bilhões em 2015 no mercado doméstico, 25% menos que em 2014. Enquanto isso, o Tesouro Nacional captou R$ 856,4 bilhões, um aumento anual de 55%.
?É CRUCIAL QUE HAJA REDUÇÃO DE JUROS?
Os juros desempenham papel central nessa conjuntura. Como o governo precisa atrair investidores para financiar seu rombo fiscal, a Taxa Selic precisa se manter alta, pois ela é a principal referência de rentabilidade ? hoje está em 14,25% ao ano, maior patamar desde 2006. Só que as empresas devem sempre oferecer retornos maiores que a Selic, para compensar o fato de que seu risco de calote é maior que o do governo. De acordo com a Apsis Consultoria, o custo médio de captação de dívida das empresas brasileiras é de 14,9%, chegando a 18,5% entre empresas consideradas especulativas. Nos EUA, essas taxas são, respectivamente, de 2,1% e 2,95%; no México, de 6,52% e 10,88%.
O problema é que o retorno sobre o capital investido das empresas está despencando. Carlos Rocca, diretor do Cemec, afirmou que essa taxa era de 15,2% em 2008 e recuou a 6,7% em 2014 entre cerca de 700 grandes empresas. Assim, para a maior parte das companhias, não vale a pena pagar juros tão altos, diante de retornos tão baixos.
? Mesmo para empresas consideradas saudáveis, o custo de captação já está elevadíssimo, pois os investidores não veem sustentabilidade a longo prazo. Ou as empresas terão de se financiar com capital próprio, como muitas já fazem, ou terão de pagar juros exorbitantes. O custo disso acabará sendo repassado ao consumidor, o que indexaria ainda mais a economia ? observa Luiz Paulo Silveira, vice-presidente da Apsis. ? É crucial que haja redução de juros no país para que esse custo caia. Mas, com um déficit de R$ 170 bilhões e aprovação de medidas como aumento para os servidores, vejo pouca margem para isso.
É consenso entre economistas que a Selic cairá. Mas as projeções compiladas na pesquisa Focus, do Banco Central, indicam que o patamar continuará alto, dada a resistência da inflação, ainda pressionando o custo de captação das empresas: estima-se que a taxa de juros terminará o ano em 12,75%, recuando a 11,25% no fim de 2017.
? Com a normalização da política econômica, a taxa de juros vai cair. Essa queda, por si só, diminuirá o custo de captação das empresas, dando espaço para a emissão de dívida. Mas uma revolução no Brasil seria se a taxa de juros caísse muito mais, e se o BNDES reduzisse o seu tamanho ? afirma Evandro Buccini, economista-chefe da gestora Rio Bravo.
Uma mudança na atuação do BNDES é tida como essencial para estimular o mercado de capitais. O banco concede crédito a empresas com juros subsidiados, tendo como referência a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), hoje em 7,5% ao ano. Segundo economistas, o problema é que muitas das empresas beneficiadas não precisam de subsídios, pois são grandes o suficiente para buscar dinheiro no mercado de ações e debêntures (títulos de dívida).
Isso, por si só, desestimula as emissões corporativas. As companhias ficaram ?mal acostumadas? com os juros baixos do BNDES, afirma Renato Vilela, do Núcleo de Estudos em Mercados e Investimentos da FGV Direito-SP. Além disso, as empresas que ficam de fora do sistema BNDES acabam sendo as de maior risco, o que eleva ainda mais o custo de captação do mercado.
? O BNDESPar (braço de participações do banco de fomento) aparece com mais de 5% do capital social em 103 companhias no grupo de empresas com maior liquidez da Bovespa. A conclusão que tiramos disso é que o BNDES entrou no lugar do investidor. É esse o papel dele? ? questiona Vilela.
Outro problema é que o juro subsidiado tem custo fiscal elevado, o que dificulta a redução da Selic. O Tesouro repassou ao banco R$ 517 bilhões. Mas enquanto o BNDES emprestou esse dinheiro cobrando TJLP, o governo o havia levantado com investidores pagando a Selic. No fim de 2015, o Tribunal de Contas da União (TCU) calculou que essa política de incentivo custará R$ 184 bilhões aos cofres públicos nas próximas décadas.
A intenção do governo tem sido reverter esse processo. A presidente afastada, Dilma Rousseff, já havia interrompido os repasses do Tesouro ao banco. Agora, o presidente interino, Michel Temer, quer que o banco devolva R$ 100 bilhões aos cofres públicos, medida que, segundo o governo, ainda depende de avaliação do TCU. Os desembolsos do banco caíram 28% em 2015, para R$ 135,9 bilhões. Para este ano, espera-se número ainda menor, uma vez que os desembolsos somaram apenas R$ 18,1 bilhões no primeiro trimestre. Na cerimônia de posse como presidente do BNDES, na semana passada, Maria Silvia Bastos Marques enfatizou que o banco será mais criterioso e dará prioridade a projetos com retorno social. O plano é que ele volte a coordenar o programa de concessões e privatizações do governo federal, como fez na década de 1990.
Procurado, o BNDES não indicou um porta-voz para entrevista, alegando passar por um momento de transição.
Com a ausência de estímulos para que as companhias recorram ao mercado de capitais, o resultado são diversos desequilíbrios, que se aprofundaram com a crise. O primeiro é a própria atrofia do mercado acionário, que perde empresas a cada ano. Eram 449 as companhias listadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) em 2000; hoje, são 359. A capitalização de mercado das firmas com ação na Bolsa, que já foi de US$ 1,73 trilhão em maio de 2011, agora é de US$ 573 bilhões, segundo dados da Bloomberg. A desvalorização recente do real, é claro, explica parte importante desse tombo, mas o valor de mercado das ações na Bolsa também vem se contraindo, comparativamente ao tamanho da economia. Segundo dados do Cemec, o valor de mercado atingiu o equivalente a 93,6% do Produto Interno Bruto (PIB) na segunda metade de 2007, mas agora representa apenas 32,2%.
MERCADO EXCLUSIVO DE GIGANTES
Deprimida, a Bolsa afetou os pequenos aplicadores. A quantidade de investidores pessoas físicas na Bolsa está na casa dos 550 mil, cerca de 10% abaixo do pico em 2010 e sequer 1% da população em idade ativa do país. Nos EUA, essa taxa ultrapassa os 50% da população ativa.
Os pequenos investidores trocaram as ações pelos títulos públicos. A quantidade de pessoas cadastradas no programa Tesouro Direto saltou de 400 mil em 2014 para quase 740 mil hoje, ultrapassando a Bolsa. Mas eles, obviamente, não foram os únicos. Em setembro de 2015, segundo dados compilados pela Cemec, apenas 11% das carteiras dos fundos de investimento no Brasil estavam aplicados em ações, contra uma média de 40% no restante do mundo.
De acordo com Vilela, outro problema é que o mercado de ações brasileiro se tornou um clube exclusivo para empresas e bancos gigantes, além de investidores estrangeiros. Ele explica que, das 231 ofertas públicas de ações realizadas entre 2004 e 2015, 88,3% somaram mais de R$ 350 milhões. E, das 38 instituições financeiras coordenadoras dessas emissões, apenas três concentram 59% das ofertas.
? O banco estipula esse tíquete porque a comissão do banco só vale a pena a partir daí. Isso faz com que só empresas grandes ou gigantes, com faturamento na casa de bilhões, consigam acessar o mercado ? afirma Vilela. ? É impensável no mercado de investimento brasileiro uma emissão de US$ 1 milhão, como ocorre em outros países.
O número de ofertas, que chegou a 71 em 2007, foi de apenas cinco no ano passado. Mesmo assim, a tendência de exclusividade continua: no período entre 2004 e 2015, os investidores estrangeiros subscreveram pelo menos 35% do volume ofertado anualmente.
Por isso, segundo Carlos Rocca, da Cemec, 70% das empresas abertas brasileiras são grandes, faturando mais de R$ 400 milhões. Mas o mercado de capitais brasileiro é tão restrito que, mesmo entre as grandes, acessá-lo é um feito para poucas: apenas 7,4% das firmas nessa categoria são abertas, e apenas 9% emitem debêntures.