Cotidiano

Crítica: Em ?I still do?, Eric Clapton grava saborosa coleção de blues

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RIO – Outro dia, Eric Clapton estava ensaiando com sua banda, que começou a levar ? adivinha! ? um blues. O cantor e lenda da guitarra de 71 anos entrou na onda e começou a meter uns versos: ?Você não sabe o que significa/ Ter essa música em mim/ Eu fico tocando esses blues/ Esperando não perdê-los?. A estrofe, acima em tradução livre, está em ?Spiral?, uma das duas inéditas de ?I still do? (?Eu ainda faço?), disco que marca o reencontro de Clapton com o produtor Glyn Johns, veterano que tem no currículo Led Zeppelin, Rolling Stones, The Who e discos de Clapton como ?Slowhand? (1977), seu maior sucesso comercial, com faixas como ?Lay down Sally? e ?Wonderful tonight?.

Então, pensaria o apressadinho, teremos uma volta ao passado? Ao de Clapton, não. Ao da música, talvez, em um delicioso disco de blues, que soa como um grupo de músicos (feras como o guitarrista Andy Fairweather Low, o tecladista Paul Carrack e o baterista Henry Spinetti) se divertindo no estúdio, lembrando composições antigas e criando novidades.

?Alabama women blues?, de Leroy Carr (1905-1935), abre o disco, na levada buliçosa da guitarra, com direito a slide, órgão Hammond e tudo o que pede o blues. A escolha do repertório, a base instrumental, a sensibilidade nos solos em lugar de qualquer exibição de técnica (daí o apelido Slowhand) são ingredientes fundamentais na musicalidade de Clapton, que manda um JJ Cale (seu ídolo, morto em 2013) balançado, ponteado por vocais de apoio femininos, em ?Can?t let you do it?, antes de cair na tristonha ?I will be there?. Esta tem uma curiosidade, a participação de um tal Angelo Mysterioso no violão e na voz. Quem? A imprensa internacional cravou George Harrison. O beatle morto em 2001 participou de um disco do Cream, antiga banda de seu amigão Clapton, usando o pseudônimo L?Angelo Misterioso. Então, concluiu-se que era uma gravação perdida de Harrison, mas o anjo misterioso em questão é o jovem Ed Sheeran, fãzaço de Clapton (que não confirma a participação do ruivinho).

Mas não é de mistérios que vive ?I still do?. Muito pelo contrário, é um Clapton até óbvio, passeando entre Robert Johnson (1911-1938), em ?Stones in my passway?, uma das melhores do disco, e Bob Dylan (?I dreamed I saw St. Augustine?), cantando e dedilhando a guitarra (apesar de um eczema que lhe atacou a pele do corpo todo durante as gravações) como quem passeia pelo Hyde Park.

O único momento que pode causar algum desconforto é justamente o mais emocionante: ?Little man, you?ve had a busy day?, acalanto de 1934 em que o pai embala o filho, prometendo-lhe novas bolas de gude. Impossível não lembrar da tragédia da morte de Conor, filho do cantor, aos quatro anos, em 1991. Mas o próprio Clapton, 25 anos depois, tranquiliza o ouvinte com ?I?ll be alright? (domínio público) e ?I?ll be seeing you?, uma suave despedida, de 1938, já gravada por Billie Holiday e Brenda Lee. Que seja breve.

Cotação: Ótimo