VENEZA ? ?A chegada?, que abre o Festival do Rio nesta quinta, às 20h30m, na Cidade das Artes, parece sugerir uma drástica mudança de rumo do diretor Denis Villeneuve. Após um início de carreira à frente de pequenos dramas em francês (?Incêndios?, 2010) e de uma série de thrillers carregados de violência rodados em inglês (?Sicario: terra de ninguém?, 2015), o canadense surpreende à frente de uma ficção científica envolvendo invasão alienígena e parábolas sobre espaço e tempo. Mas o filme, que chega aos cinemas brasileiros em 10 de novembro, é, na verdade, a manifestação de um desejo há muito represado. Links FestRio
? Pode ser surpresa para aqueles que não me conhecem, mas meus amigos próximos sempre me perguntam: ?Por que demorou tanto a fazer ficção científica?? ? contou Villeneuve, 49 anos, durante o Festival de Veneza, no mês passado, onde ?A chegada? fez sua estreia mundial, na competição pelo Leão de Ouro. ? Fui criado devorando gibis e graphic novels, filmes e livros de grandes autores do gênero. Sonhava em explorar esse universo há muito tempo, mas em Montreal, onde moro, só é possível fazer um tipo de filme. Hoje, posso me aventurar em projetos de maior escala.
Um desses projetos é a aguardada sequência de ?Blade runner, o caçador de androides?, lançado por Ridley Scott em 1982, que Villeneuve está rodando na Hungria ? o diretor forçou uma brecha no cronograma de filmagem para promover ?A chegada? no festival italiano. A continuação é protagonizada por Ryan Gosling (?Drive?) e Jared Leto (?Clube de Compras Dallas?) e conta com a participação de Harrison Ford, o detetive Rick Deckard na história original, ambientada em 2029. Diferentemente de ?A chegada?, que é material fresco, Villeneuve agora lida com o peso de um clássico.
? Achava que seria divertido fazer ficção científica, o que sempre quis, mas bastaram 15 minutos no set de ?A chegada? para perceber que é um pesadelo criar ambientes e seres nunca vistos antes. Isso só aumentou meu respeito pelos cineastas que fizeram filmes como esse no passado ? disse. ? A maior dificuldade do novo ?Blade runner? é que, a cada decisão que preciso tomar, é como se eu sentisse a respiração do Ridley na minha nuca. Ele me deu total liberdade para fazer o filme e sinalizou estar disponível para consultas, mas confesso que não tenho dormido muito (risos).
Recebido com entusiasmo em Veneza, ?A chegada? oferece uma alternativa mais reflexiva e filosófica aos filmes que descrevem encontros de humanos com extraterrestres ? pense em ?Contatos imediatos do terceiro grau? (1977), de Steven Spielberg, dirigido por Terrence Malick. No centro da trama está Louise Banks (Amy Adams, já cotada para o Oscar por sua performance), linguista convocada pelo governo americano ao interior do estado de Montana, onde uma das 12 espaçonaves em forma de concha que se espalharam pela Terra paira sobre o solo. A missão da perita, ainda de luto pela morte de sua filha, é encontrar uma forma de comunicação com os visitantes e descobrir se são amigos ou inimigos.
À medida que Louise e seu parceiro, o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner), tentam decodificar a enigmática linguagem dos alienígenas ? espécie de moluscos de sete tentáculos que se exprimem por círculos de tinta ?, a paranoia militar se alastra pelo mundo, com líderes da China e da Rússia querendo se antecipar a um possível ataque dos forasteiros. Nesse sentido, ?A chegada? se aproxima da ficção científica americana dos anos 1950, que usou o medo do desconhecido para disfarçar o pavor do comunismo. Aqui, o temor pode ser associado ao imigrante, ou ao refugiado.
? Ao tentarmos descrever a reação política das diversas nações à presença alienígena, nos vimos caminhando entre clichês. Mas, toda vez que eu lia o jornal, pela manhã, percebia que estávamos no caminho certo. É incrível como o comportamento de nossos líderes diante de crises pode ser tão previsível ? observou Villeneuve, que evitou colocar naves sobre pontos óbvios, como a Casa Branca, e preferiu espalhá-las por lugares que não tivessem um ?significado político especial?, na África e na América do Sul, para dar um ar mais ?internacional? à história. Trailer de ‘A chegada’
O roteiro, desenvolvido por Eric Heisserer, é uma adaptação do conto ?Story of your life?, de Ted Chiang, publicado em 1998. O texto foi sugerido a Villeneuve pelos produtores Dan Cohen e Dan Levine, que buscavam uma parceria com o canadense desde a repercussão de ?Incêndios?, indicado ao Oscar de melhor produção em língua estrangeira. À época, Villeneuve já estava se preparando para filmar ?Os suspeitos? (2013), mas concordou em retomá-lo assim que fosse possível. O roteiro final tem a mão do diretor.
? É difícil encontrar boas histórias de ficção científica hoje em dia. A maior parte do que é produzido é voltada para o público adolescente, versa sobre revolução tecnológica, ou armas e guerras. Há pouca coisa que explore a condição humana. Quando me mostraram ?Story of your life?, achei o que estava procurando ? lembrou. ? A ideia de que a cultura e a língua podem mudar a sua interpretação do mundo, expressa no conto do Chiang, é bela e desafiadora. No final das contas, fora da bolha de nossa língua, só há o poder da intuição.
?A chegada? tem visual contemporâneo, inspirado na obra do artista plástico americano James Turrell, que trabalha a sensação de infinito com luzes, cores e grandes espaços. Mas o filme de Villeneuve tem raízes fincadas na ficção científica americana dos anos 1970 e 1980, particularmente nos filmes de Spielberg.
? Tento ter um pensamento artístico em relação ao cinema, esquecer tudo o que já foi feito e fazer algo como se fosse a primeira vez. Ou seja, evitar referências. Mas, para quem gosta de ficção científica e cresceu naquela época, é impossível não lembrar de Spielberg. Ele foi meu herói na adolescência ? reconheceu. ? Enquanto filmava, estive consciente de que estava de alguma forma fazendo uma homenagem a um mestre que admiro.