Celular roubado dá uma dor de cabeça danada. Na verdade um baita estresse. A subtração do celular da vida de um indivíduo pode leva-lo à terapia se já não intensificou as consultas no psicólogo que o acompanha há algum tempo. Não é apenas pelo contratempo, os contatos profissionais que se perdem. Tem as fotos dos filhos e os impagáveis vídeos de imagens deles que se foram para sempre, levados pelas mãos de um ser humano que se aproveitou de um descuido, de um momento de bem viver, de um instante em que não estava a pessoa mergulhada na paranoia de se proteger o tempo todo de todo mundo, o comportamento de prontidão que não nos damos conta que rege nossa vida.
Pior do que ficar sem celular, o mesmo que ainda está sendo pago em suaves prestações no cartão de credito, é ter de comprar outro, refazer os contatos perdidos, avisar meio mundo do que aconteceu, lembrando que o meio mundo não está nem aí se você está ou não de celular: amanhã tem reunião com a equipe cujos whatsapps ele não possui mais.
Mais devastador que o corre-corre é ficar imaginando que quem quer que esteja com o aparelho nas mãos está vendo a foto dos filhos estampada no visor. Quem roubou o aparelho vai ver aquilo, vai saber que o celular pertencia a um pai de família, mas mesmo assim vai deletar tudo, tudinho, e de uma única vez, exterminando, sem dó nem remorso, as recordações mais doces daquele ser humano, lembranças importantes dos momentos de alegria que a vida nos traz. Do outro lado, porém, a postura é outra. Azar o dele. Nem tô. O celular agora é meu.
Sempre na defensiva, vivemos o constante exercício de não permitir que pequenos dissabores desorientem nossa vida. Mas se pararmos para pensar, não é difícil, com tudo o que nos cerca, entrarmos em uma espiral de desilusão. Dizem ser a depressão a doença do século e já tem quem diga que a doença do Pânico vai atingir índices alarmantes nas próximas décadas. Daí a falta do celular levar alguns à terapia. Não foi o aparelho. Foi a gota aquela que transbordou o copo.
E assim, desiludido, chega o cidadão, agora sem celular, na sua casa, seu lar, aquilo que deveria ser seu porto seguro. Por que trabalhar? Para nos roubarem? Por quê ser honesto? Por quê pagar as contas em dia? Aliás, para que serve a vida além de nos colocar em situações difíceis? No meio dessas conclusões, de repente ele chega. De mansinho, com aquela cara de quem não quer nada, ou fazendo um fiasco gigantesco, não importa: ele está ali, tendo a pessoa celular ou não. O rosto, então, perde as linhas mais endurecidas adquiridas com os recentes acontecimentos e há quem sinta a tensão escoar. Uma língua ligeira seca aquilo que poderia ser uma lágrima. Pula. Recua. E salta para o colo da criatura tão amada por quem esperou o dia inteiro.
Viver tem lá seus dissabores mas há suas compensações também. Poder contar com o auxílio terapêutico de um cachorro é uma delas. A presença de cães na vida das pessoas é considerada até mesmo em pesquisas norte-americanas sobre longevidade. Tão importante quanto não fumar e ter amigos é ter um cachorro como companhia, isso para quem gosta de cachorros. Quem tem um cachorro nunca está sozinho. E se soubermos captar a essência do animal, o lado primitivo da vida, talvez tenhamos o entendimento de que tem, sim, tem muita gente estragada por aí, mas não precisamos nos fixar nessa parte ruim da realidade em que estamos inseridos. Viver é muito mais do que isso. É tomar sol, se esticar no tapete, relaxar depois de um banho, aproveitar um prato de comida, é se espreguiçar demoradamente depois de acordar de cada sono igualmente merecido. O cão é grato ao seu dono por ter dois de seus principais problemas resolvidos: alimentação e abrigo. O resto que a vida oferece é lucro, e o lucro é ter um dono para cuidar, lamber e agradar. Essa é a essência da vida canina: gravitar em cima do dono. Viver uma oportunidade extraordinária que vale cada respiro quando se tem um dono.
Exagerei? Não. É isso que ocorre em milhares de lares em todo o planeta. O benefício trazido com um animal e companhia, em especial cães e gatos pela conhecida interação, em nada se assemelha àquilo que se busca quando se adota uma criança. São coisas distintas. E bem distintas. Sabe-se que o maior benefício de um mascote é a companhia. Mas não estamos falando aqui de qualquer companhia, mas de companhia de qualidade, um agente de depuração mental, um auxílio a necessária higiene mental que tanto necessitamos para prosseguir nessa frenética luta que se tornou o dia a dia. Estar acompanhado de um cão é receber um sutil convite para descermos do pedestal de Homo sapiens e viver, brincar, tomar sol, esquecer que existe o tal do celular que, quer saber? Diria o cão, Você não nasceu com celular, aparelho que danifica os ouvidos e lembra responsabilidades o tempo todo. Cães nos lembram que estamos no caminho errado, que cruzamos a fronteira do bem viver, que estamos ocupados demais no cotidiano urbano para nos darmos conta de que somos, sim, animais, e que precisamos atender às necessidades mais primitivas. E sem culpa.
Agora piorou: precisamos, então, de cachorros para aprender a ser gente? Sim, mais ou menos isso. Em um mundo tão perverso e conturbado, animais oferecem constância. Nem sempre é possível confiar no marido, não sabemos se estamos fazendo as melhores escolhas, não temos certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de quanto receberemos, afinal, em nossa aposentadoria e quando ela se dará. Temos medo de muita coisa. De sofrer. De sermos abandonados. No meio de tantas incertezas, o caráter de nosso cachorro permanece o mesmo. Já é um começo.
Tá, pensa o leitor, agora o caráter do cachorro salva vidas…
A vida, não, mas o dia, sim. E sendo a vida composta de dias, talvez devêssemos compreender melhor porque algumas pessoas gostam tanto de seus animais. Além do afeto indiscutível, é o cão um elo que nos liga ao mundo natural, ao direito que temos de relaxar depois do almoço e de se espreguiçar ao sentir no rosto os primeiros raios de sol, pequenos prazeres da vida que perdemos no meio do caminho. E tem a gratidão. Podemos não nos dar conta disso, mas a falta dela nos consome. A gratidão é filha da solidariedade, aquela que tentamos manter acesa dentro de nós. Sem a gratidão, a solidariedade fica meio sem sentido. A fidelidade inabalável dos cães supre parte dessa necessidade de termos uma resposta positiva por aquilo que fazemos de bom porque agir para o bem às vezes gera custos e dedicação. A bondade que fazemos para um cão reflete na essência do animal que, veja, só, sabe retribuir. E em dobro, uma relação que às vezes não encontramos nem mesmo entre pais e filhos, e não é difícil entender o porquê. Cão não é humano. Enquanto cães são puro afeto e dedicação, pessoas amam e odeiam na mesma intensidade, frutos de complexos relacionamentos que cimentaram seu coração. E é bom estar cercado de criaturas agradecidas, bondosas e que gostem da gente, nem que esse pacote venha em forma de cachorro.
Animais, porém, não substituem as relações humanas. A conversa com um amigo, o abraço de um pai, jogar bola com um filho. Mas suas doses diárias de gratidão e carinho contribuem bastante para o bem estar de seu dono.
Um dia ruim rouba nossa força, tira o foco de nosso trabalho e paralisa temporariamente nossa capacidade de praticar o bem. Mas vem a noite e com ela um novo amanhecer, outra oportunidade (aprenda com seu cão!) de se alongar demoradamente ao sentir o sol chegar no rosto, de agradecer pela refeição da manhã e de passar algum tempo recebendo carinhos de quem gosta da gente, um bálsamo restaurador que ajuda a nos dar o ânimo necessário de ir à loja de celulares, mais uma vez, negociar um novo pagamento.
Vivian Weiand