Cotidiano

?EUA estão numa encruzilhada social?, afirma especialista em diversidade

eua WASHINGTON ? O ódio e a
intolerância se transformaram em violência na semana passada nos Estados Unidos.
A morte de dois negros por policiais brancos, aparentemente sem motivos, foram
filmadas, viralizaram e geraram uma onda de protestos que acabou em tragédia
ainda maior na quinta-feira: a morte de cinco policiais por um atirador em
Dallas (Texas), que também feriu outros sete oficiais na emboscada.
Infelizmente, para muitos, há um risco de isso vir a ser ?o novo normal?, como
disse a procuradora-geral americana, Loretta Lynch, ou apenas um indício de um
?verão longo e quente?, nas palavras do deputado GK Butterfield. Isso sem falar
que, há menos de um mês, o país ficou de luto pelas 49 pessoas assassinadas no
atentado a uma boate gay em Orlando, no pior ataque com armas de fogo da
história do país.

O professor de Justiça Social da
Metropolitan State University (MSU), de Denver (Colorado), Ramon Del Castilho,
doutor em Diversidade na Sociedade Americana, acredita que o país vive uma
encruzilhada com a questão da violência e da justiça social e diz que a situação
piora quando uma sociedade dominada pelo ódio tem fácil acesso a armas. E que,
para grande parte da população negra, há dois padrões de Justiça.

As mortes e a incidência de
violência entre negros e a polícia aumentaram. Na busca de soluções pacíficas
para essa epidemia crescente, grupos afro-americanos e seus apoiadores reagiram
aos episódios recentes organizando manifestações que eles aspiravam ser
pacíficas. No entanto, esses atos foram interrompidos por provocadores e
infiltrados, liderados por racistas e vendedores de ódio, grupos que
aparentemente querem voltar à era dos direitos pré-civis e que estão acostumados
a usar métodos de confronto. Um retrocesso. A polícia, por sua vez, tem
contribuído para a dialética maniqueísta do tema, aplicando força extensiva como
forma de controle do conflito. Como resultado, temos a violência crescente, que
leva, consequentemente, a um trauma coletivo e a um sentimento de insegurança
por parte das comunidades que foram vítimas da brutalidade policial. As relações
raciais na sociedade americana nunca foram totalmente resolvidas. Muitas vezes,
pessoas negras são invisíveis para a estrutura de poder. Isso se repete com
outros grupos: há muitas mortes de imigrantes na travessia de fronteiras, por
exemplo, que raramente são noticiadas.

O GLOBO – Esse uso de força pela polícia evidencia falta de treinamento ou
ausência de punição para os excessos praticados por oficiais?

RAMON DEL CASTILHO – Os problemas começam na seleção dos policiais. Aqueles que têm o poder de
decidir quem será aceito ou não na polícia pertencem a essa organização, ou
seja, a tomada de decisão nesta área não vem dos moradores da comunidade que
supostamente será atendida. Isso define o ritmo para o engano cultural e
linguístico, o conflito cultural e, por vezes, a violência na comunidade. Além
disso, há um sentimento geral da comunidade afro-americana de que existe um
duplo padrão de justiça: um para os moradores da comunidade e outro para
policiais. Muitas das decisões sobre as mortes de negros, pardos e pessoas nas
mãos de policiais foram tratadas de forma desigual nos tribunais. Há também
muitos casos em que policiais recebem leniência ou exoneração completa
concedidas por governos locais. Quando esta norma foi violada, comunidades
reagiram a essa injustiça e se mobilizaram através de manifestações
pacíficas.

Os protestos decorrentes dessas mortes podem resultar em uma nova
onda de violência por todo o país?

Os Estados Unidos estão numa encruzilhada com a questão da violência e da
justiça social. Muitos estão consternados com a falta de justiça para a
comunidade negra. A matança de policiais por franco-atiradores é totalmente
desumana. Ninguém deve tolerar tal atrocidade. Vingança nunca foi antídoto à
violência. Como ativista da justiça social, chego à conclusão de que dois erros
não levam a um acerto, apenas vingança. Portanto, o assassinato de policiais só
estabelece o ritmo por mais hipervigilância e, eventualmente, mais violência.
Como o Papa João Paulo II declarou: ?A justiça social não pode ser atingida pela
violência. Violência só mata o que pretende criar?. Se as administrações não
encontrarem soluções, a violência pode aumentar.

A morte dos policiais em Dallas pode levar a uma nova onda de ódio,
injustificado, contra negros nos EUA?

O incidente de Dallas mostra a raiva crescente e o ressentimento dos
afro-americanos em relação à violência injustificada perpetrada por aqueles que
supostamente devem ?proteger e servir?. Muita gente vai usar a morte dos cinco
oficiais como uma racionalização para busca de vingança e, de certa maneira, de
retaliação. A Justiça tem que restaurar o equilíbrio, buscando paz e
reconciliação. Por outro lado, existem racistas que não precisam de desculpas
para continuar as atitudes preconceituosas em relação aos negros e outros grupos
marginalizados.

Qual a importância da questão das armas neste debate? Esses
episódios, junto com o caso de Orlando, que completa um mês na terça-feira,
podem levar à revisão da legislação?

O acesso às armas pelos americanos
certamente precisa ser reavaliado. Muitas vezes pessoas instáveis e com ódio,
impulsionadas pelo sentimento de vingança, têm fácil acesso a armas. Por outro
lado, muitos podem recorrer à justiça pelas próprias mãos. Em algum momento
precisaremos conciliar o direito ao porte de armas e estabelecer restrições
necessárias.

Que ações podem contribuir para se alcançar a paz racial no
país?

A harmonia racial só será
alcançada quando todos os americanos desenvolverem valores como amor, respeito,
compaixão, tolerância e justiça social. Mas o mais importante, quando todos
desse país aprenderem a colocar esses valores em prática e assim lidar com a
diversidade em nossa sociedade, é encarar que ainda há um tratamento
privilegiado aos brancos nos Estados Unidos. Alguns creem que isso inclusive
está incorporado à consciência coletiva americana. Só um debate franco irá
permitir a cura desse trauma coletivo. A igualdade só será alcançada quando as
políticas públicas em vigor, de fato, forem ?do povo, para o povo e pelo povo?,
e, assim, utilizadas para proteger os mais fracos. É preciso também haver a
prestação de contas tanto do governo como de grupos sociais. Temos todos que
aprender a trabalhar em conjunto para criar uma sociedade justa, democrática e
inclusiva.