Rio – Para os afortunados, como o resenhista que vos escreve, que não conheciam os
textos que Anderson França (codinome Dinho) publica na internet, narrando seu
cotidiano permeado de memórias, a seleção (com quatro inéditas) reunida na
coletânea ?Rio em shamas? é uma revelação superlativa de um cronista de um tipo
que hoje raramente se encontra. Ex-porteiro, ex-camelô, ex-vendedor, ativista
social, empreendedor e, enfim, roteirista eventual de TV e cinema, Dinho
consegue transformar o que poderia ser uma dessas louváveis experimentações, com
a visão ?de dentro para fora da exclusão social? (que terminam por soar naïf),
em um conjunto maduro, de um escritor no auge de sua consciência e equilíbrio,
editado sem os eventuais excessos da rede.
Pois suas crônicas conseguem transmitir o espírito do tempo conjugando um
arsenal de linguagens que vai desde a origem do personagem-narrador suburbano
(os dialetos da memória e da contemporaneidade desta condição) com os demais
códigos, do morro, da classe média, das elites, das tribos, dos memes, das
grandes e pequenas mídias e dos regionalismos oriundos das migrações para a
cidade grande.
Essas vozes se propagam, ressoando uma polifonia de tessitura altamente
sofisticada, mas inteligível e comunicativa para qualquer tipo de leitor, que há
de encontrar a camada que melhor lhe convém. Esse arsenal é conduzido por uma
?voz de fundo? pseudo-adolescente, que lhe tira o peso, edificando uma filosofia
própria do autor que interpõe o trágico e o cômico em harmoniosa gangorra. O uso
criativo da tipologia gráfica cria ênfases e dimensões inesperadas que ajudam o
leitor a ?ouvir? as passagens, dialógicas, descritivas, ou reflexivas.
Além disso, o livro parece que saiu do prelo ontem, tamanha a presença da
atualidade recente do noticiário, o que se pode verificar em sentenças como ?Já
fui conduzido COERCITIVAMENTE inúmeras vezes por dona Regina até o Supremo
Tribunal do Caralho Fudeu? ou expressões como ?O impeachment do Uber?. Na
escrita de Dinho, descobrimos que o lanche Mirabel, um dia, já foi o que é hoje
o celular. Entramos na cabeça de um suburbano que arranja uma namorada no
Leblon, vem pela primeira vez à Zona Sul, descobre que ?rico existe de verdade?
e, ao ser bem tratado pelos grã-finos, especula sobre que estratégias
socioculturais podem estar por trás do afeto.
TINA TURNER E CADEG
No imaginário hiper-realista de Dinho, Tina Turner é uma dona roliça e mais
velha destinada a, no momento de maior miséria de um menino gordo que sofre
bulllying cruel, redimi-lo em encenação libidinosa, fazendo dele uma espécie de
herói ao avesso. Um herói popular, pronto a quebrar a cara de sujeito racista,
mas que vai até o Cadeg cedinho, idílico, colher hortaliças. Que discorre como
um semiólogo pós-moderno sobre a importância do esfíncter anal na formação do
caráter. Que pede ao Deus ?de Abraão, Jacó e Isaque? para tirar 9,4 numa prova,
é rejeitado pelo Criador e mesmo assim consegue atingir o grau, construindo uma
prova ontológica da ineficiência divina.
Um herói que eleva as viagens em trens urbanos a odisseias, criando um
tempo-espaço à parte onde tudo que há e não há se apresenta. Ao ser ejetado de
volta na cidade, o gordo constata, da maneira mais racional e precisa, o vazio
absoluto da civilização concreta, externa ao ?cogito?.