RECIFE, PE ? Em busca de inspirações mais frescas para suas telas, em 1891 o pintor francês Paul Gauguin deixou a urbanizada Paris e foi para o exuberante Taiti. Uma das primeiras impressões do país anotadas por ele num caderno foi o perfume exalado pelas mulheres taitianas, o ?noa noa?, ?meio animal, meio vegetal, um cheiro de sangue misturado ao das gardênias que usavam nos cabelos?.
O que posso pedir mais da vida? Nada. Passei a vida inteira com desejo de publicar isto. Não há escritor que não escreva com a intenção de publicarAo ler o diário que relata os dois anos em que o artista pós-impressionista passou na Polinésia Francesa, publicado com o título de ?Noa noa?, e que acabou se tornando uma obra de referência nas artes visuais, o artista brasileiro Francisco Brennand emocionou-se de tal maneira que decidiu começar ele mesmo um caderno. Isso aconteceu no verão de 1949, quando Brennand e a mulher, Deborah, fizeram o caminho inverso de Gauguin: saíram da arejada beira do Rio Capibaribe, no Recife, em busca da ilustrada Paris rejeitada pelo pintor francês.
Foi no navio que Brennand deu início aos diários que escreveria por toda a vida, hábito que mantém até hoje, às vésperas de fazer 90 anos, em junho de 2017 (?Quantas vezes abro este caderno, aturdido pelas lembranças e pronto para iniciar o que tantos outros artistas, escultores e pintores fizeram em grande parte de suas vidas!?, escreve na primeira entrada, a 10 de janeiro de 1949). Os diários, que se acumularam ao longo de anos, lidos por poucos amigos, chegam agora a público em edição de luxo organizada pela sobrinha-neta, Marianna Brennand Fortes.
São 50 anos de memórias do artista, um dos maiores escultores e pintores vivos do país, reveladas em quatro volumes que totalizam 2.190 páginas. ?Um caso singular de memorialismo no Brasil?, observa o crítico de arte Paulo Herkenhoff na apresentação da obra. ?A maior no gênero do diário já aparecida na literatura brasileira?, escreve o poeta e ensaísta Alexei Bueno no prefácio. Os três primeiros volumes, intitulados ?O nome do livro? pela insistência com que as pessoas lhe perguntavam qual seria o nome do livro, abrangem os diários escritos entre 1949 e 1999; o quarto, ?O nome do outro?, é uma versão ficcional criada pelo autor, um acerto de contas com o passado em que preferiu lidar com personagens inventados.
? Eu não estou feliz, antes estou triste, porque a coisa se realizou ? diz Brennand, figura que guarda os modos de um profeta, com o corpanzil robusto a enfrentar a voz doce e pausada, no escritório onde trabalha, na Oficina Brennand, no Recife. ? O que posso pedir mais da vida? Nada. Passei a vida inteira com desejo de publicar isto. Não há escritor que não escreva com a intenção de publicar. Borges diz: ?o leitor é o autor duplicado?. Por mais medíocre que seja o leitor, é melhor do que o autor. Porque não há autor sem leitor.
?Tanto fôlego para escrever exigiu ainda mais fôlego para viver?, escreve Herkenhoff na apresentação do caudaloso diário do artista. Brennand comenta que gosta da palavra fôlego, acrescentando que sempre lhe perguntam por que escreve tanto. A resposta já coçava:
? Certa vez eu vi Maria Helena Vieira da Silva (pintora franco-portuguesa, nascida em 1908, falecida em 1992), que era uma mulher inteligentíssima, dizer uma frase curiosa: ?Se Van Gogh não tivesse escrito aquelas cartas, ele não teria sido considerado tão genial pelo mundo todo?. Ele é um paradigma, um exemplo de tudo. Ela tinha razão. Os artistas sempre escreveram, escrevem. Romances, sonetos, novelas, diário. André Gide, que é um grande crítico e romancista moderno, adorava o romance ?Dominique?, de Eugène Fromentin, um dos discípulos de Delacroix. Quando soube disso, fui ler o romance. É sensacional. Não é uma novidade, portanto, perder meu tempo para escrever mais de mil páginas.
Ao longo de uma vida dedicada às tintas e à cerâmica, obra mais conhecida pelo imenso parque de esculturas que leva o seu nome num bairro afastado do Recife, uma cidadela inventada a partir de uma mitologia toda própria, o artista relata viagens, descarna amizades, comenta leituras, descreve com rigor os sons e texturas da natureza. Nessas ?mais de mil páginas?, observa seus interlocutores, desfia o próprio processo criativo, fala muito das lições que lhe dá a cerâmica, ?matéria ligada aos quatro elementos, a terra, a água, o ar e o fogo, a cerâmica é a própria substância da vida, lidar com ela é como lidar com o trovão?. Ora desdenha de invenções tecnológicas, ora arrisca blasfêmias, ora sofre, comentando a viuvez de um cisne negro de seu sítio, e até opina sobre jogos de basquete na TV (no caso, um Estados Unidos x Iugoslávia, em plena Guerra Fria). Não é um diário, é um mundo.
Brenannd também escreve copiosamente sobre seu encanto pelas mulheres. No prefácio, Alexei Bueno chega a notar que, em tais excessos, há ?uma certa misoginia muito curiosa, que se inclui como uma espécie de defesa?.
Como no excerto de 4 de maio de 1978, quando Brennand desabafa: ?Quando uma mulher diz ?eu faço?, isto me assusta. As mulheres não parecem ter nascido para fazer nada. Fazer é elaborar. É sinônimo de algo que custa a aparecer e de que nenhuma mulher poderia jamais tomar conhecimento, muito menos avaliar. A maioridade espiritual da mulher é a concepção e suas consequências (…) Só a Mãe Natureza percebe aquilo que elas de fato sabem. Sabedoria totalmente oculta à percepção dos homens. No final das contas, ficamos empatados, embora não exatamente iguais?.
Se você tiver memória e fatos, e se você prestar atenção ao que está acontecendo, vai ver que já vivemos épocas muito graves. Porque em geral estamos muito distraídos. A nossa capacidade de atenção é mínima.Quase 40 anos depois, o artista comenta:
? Eu escrevi muita tolice. Há a tolice e a danação, mas no meu caso foi tolice mesmo.
Das tolices que escreveu, se arrependeu, sobretudo, de todas as escritas nos cadernos que abrangiam os anos de 1963 a 1973, período do qual não guardou nenhum registro. Brennand queimou todos os diários da época na mesma ?cabeça do forno? que usa para queimar as esculturas de cerâmica. Era um período ?muito amargo?, diz ele, com muitas queixas à própria família (formada por tradicionais empresários da indústria de telhas e tijolos pernambucana, daí a ligação do artista com o barro).
O artista, homem atento ao presente, que lê os jornais todos os dias, vê séries de TV, filmes na Netflix e está terminando ?Enclausurado?, novo romance de Ian McEwan, e que prepara a sua exposição de despedida, 20 telas pintadas neste ano, prefere ?não romantizar o passado?.
? Nós temos a tendência, quase como se fosse pecado de soberba de atribuir à nossa época situações especiais. Então nós pensamos que vivemos uma época particularmente ruim, ou particularmente desestruturada, ou imoral. Se você tiver memória e fatos, e se você prestar atenção ao que está acontecendo, vai ver que já vivemos épocas muito graves. Porque em geral estamos muito distraídos. A nossa capacidade de atenção é mínima.
Brennand prefere ocupar a memória com as histórias realmente especiais, que vão se atropelando, tanto no discurso quanto nos diários.
? Essa maneira que eu tenho de misturar as coisas, que a mim parece absolutamente natural, para quem não está acostumado, é muito desagradável. Já é difícil seguir uma pessoa falando coisas triviais, imagina seguir um sujeito falando com tantas digressões… Mas o fato de eu ter memória para determinados assuntos, e não digo memória para assuntos especiais, é pelo fato de simplesmente não esquecer. As histórias me embrenham pelos ouvidos, elas me fascinam e eu não me esqueço delas.