Opinião

Chuteiras paternas: laços de sangue

Um enxadrista desfalcado de uma rainha e de um bispo estará em provável dificuldade. Esse foi o encerramento do último ano, com a perda dos maiores símbolos do poder e da Igreja: rainha Elisabeth II e o Papa Emérito. Seguiram acompanhados de mais um símbolo: a identidade do Brasil, intitulado de rei: Pelé. Enquanto mecanismos de expressividade de comunicação, os símbolos remetem à unidade e unanimidade, em qualquer dos âmbitos sociais.

Contudo, aquele que por muitas vezes foi referenciado como o “passaporte” do Brasil, como identidade do povo brasileiro, embora impecável na trajetória profissional, não teve a mesma unanimidade no âmbito pessoal; ainda que refletisse, em grande medida, as concepções parentais do seu contexto histórico.

O “Edson brasileiro”, inventor das peripécias futebolísticas, deixou, por muitos anos, soltas as amarras das chuteiras parentais com relação a uma de suas filhas: Sandra Regina. Com a infelicidade do nascimento de uma relação não formalizada, dependia do reconhecimento de paternidade. Pela ausência deste, trilhou as dores de milhares de crianças e adolescentes. Na década de 1990, conseguiu o reconhecimento judicial pelo exame de DNA.

Por séculos, os vínculos de filiação estiveram atrelados ao matrimônio, sendo que os filhos de relações extraconjugais remanesciam na clandestinidade, despojados de direitos. Com a pluralização do reconhecimento jurídico de formas distintas de relacionamento e com a liberdade sexual, outros mecanismos ganharam espaço. No caso de não ser filho concebido na constância do casamento ou com o consentimento das técnicas de reprodução assistida, é fundamental a manifestação de vontade do pai para a criação do vínculo parental.

Na medida em que tal laço de filiação torna-se direito atrelado à dignidade do filho, não é justo que repouse tão somente na vontade paterna. O surgimento do exame de DNA foi fundamental para maior efetividade do direito ao reconhecimento da ascendência genética, com mínimas chances de erro. Em eventual discordância do genitor quanto à paternidade, a recusa na realização do exame leva à presunção do laço parental, em consonância com os demais indícios do processo, até que se prove o contrário.

Ainda, insta salientar que o exame pode ser realizado mesmo post mortem, com a exumação do cadáver ou a partir do pareamento genético com os parentes mais próximos do falecido. Graças aos esforços de Sandra Regina, é possível a realização de tal exame gratuitamente, comprovada a hipossuficiência, revelando a importância da verdade biológica, sem obscurecer os aspectos afetivos. Afinal, ser genitor não é sinônimo necessário de ser pai, visto que a paternidade se vincula ao afeto e à responsabilidade.

Nem todos alcançam à redenção, mas por amor ou pela dor, os ciclos devem se fechar. Os símbolos não esmorecem, permanecem por gerações, ainda que por reflexo. O legado mais longevo de uma monarca, a coragem da renúncia de um sacerdote e o perdão de último suspiro do “rei” permanecerão nos escritos da história, com a potência de influenciar a ação daqueles que simplesmente lhe percorrem.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas