Demócrito e Heráclito, dois grandes filósofos, tinham concepções diferentes sobre a condição humana. O primeiro ridicularizava a vida e o homem. Só aparecia em público com um ar arrogante e zombeteiro; o segundo, ao contrário, tinha compaixão pelo ser humano, demonstrando solidariedade com seu semblante sempre entristecido e os olhos marejados de lágrimas.
Nos últimos tempos, a índole de Demócrito tem povoado os espaços nacionais, com uma verve cheia de malícias em defesa de posições extremadas, e que resulta em um processo de flechadas recíprocas entre grupos da sociedade. Já os valores humanos são desprezados ou colocados em segundo plano. O clima de emboscada permanente que acirra os ânimos vai cada vez mais aumentando a distância entre o território, o País e a Nação.
Expliquemos. O território é o porte continental que abriga nossas belezas e riquezas naturais. O território não tem alma, é um diamante bruto. Lapidado por leis, códigos, processos, habitado por pessoas e governado por representantes do poder popular, adquire o status de País.
Mas a Nação continua ainda muito distante. Pois a Nação é um ente com alma, é o espaço dos direitos, deveres e seus atributos: o civismo, a solidariedade, a justiça, o desenvolvimento, a liberdade, a ordem, a democracia, a autoridade, a cultura, a soberania e a cidadania.
E o que vemos na paisagem? Milhões de brasileiros, em seus espaços, mais se assemelham a incrustações de conchas em rochedos brutos, assolados por tempestades e furacões. É o desemprego em massa; são as doenças, algumas de séculos passados, que nos assolam, e outras, de nomes estranhos que aqui aportam trazendo medo; é a autoridade máxima que convoca o povo a atirar pedras nas instituições; são as Forças Armadas, que se recolhem ao silêncio em vez de proclamar sua crença na ordem democrática; são xingamentos em cadeia contra meios de comunicação e jornalistas, alguns recheados de baixo calão.
A esperança vira um pontinho aceso nos céus.
Não por acaso, o clima de faroeste transpira violência, aqui e ali, com estranhas armas (empilhadeiras, por exemplo), e cowboys exibindo suas cartucheiras cheinhas de balas, alguns com o selo de milicianos pregados na testa. Onde já se viu, gente de Deus, policiais fazendo motim?
Não por acaso, a poeira tórrida do território vai obnubilando o desenho de civismo que habita a Pátria, esse sonho que teima em permanecer na consciência dos homens de bem.
E assim o país vai se locupletando de Demócritos, apesar da imensa carência de Heráclitos.
Quem ouviu, nos últimos tempos, um grito de “Viva o Congresso”? Mas é ali que vicejam as condições para a grandeza da Nação. Quem acha que os impostos e os tributos estão diminuindo? O que se ouve, com certa intensidade, é uma voz cavernosa que promete a ressurreição de malfadada CPMF. A obsoleta legislação trabalhista da era getulista até foi mudada, mas há guerreiros da maldade que teimam em querê-la de volta.
Quem acredita que a violência está diminuindo? O Ceará até parece um abatedouro de pessoas. Alguém acha que professores e alunos estão satisfeitos com as condições de ensino ou com a gestão de um ministro que passa o tempo azucrinando quem não concorda com suas extravagâncias? Que felizardo consegue encontrar uma bandeira brasileira para adquirir antes da bandeira de qualquer grande time de futebol? Quem acha que o PIBF (Produto Interno Bruto da Felicidade) está crescendo?
O tom do mundo, escreveu Montesquieu em Meus Pensamentos, consiste muito em falar de bagatelas como se fossem coisas sérias, e de coisas sérias como se fossem bagatelas. Pois é, quantas autoridades não fazem essa inversão, tentando amaciar o cotidiano com pitadas de riso, mesmo que a estação do ano seja repleta de dor e angústia? Tem muita gente debochando com coisas sérias da política, inclusive gente estrelada.
Será que o interesse comum, em nossas plagas, não passa de abstração? Que saudades dos tempos bucólicos, aqueles idos em que homens, simples em seus costumes e firmes nas crenças, cultivavam a solidariedade, as lembranças dos antepassados, o amor paternal, o amor filial, o respeito aos mais velhos, enfim, uma bagagem de vida descomplicada que proporcionava aos cidadãos certa doçura de viver. Hoje, vivemos sob o signo da radicalização, das ameaças e do medo.
Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação – Twitter@gaudtorquato