
Após quase quatro anos de debates no Congresso Nacional, o Brasil dá um passo decisivo na modernização da defesa agropecuária com a regulamentação dos programas de autocontrole, um dos pilares da Lei 14.515/2022. O modelo, que preserva integralmente o poder de polícia do Estado, cria mecanismos para ampliar a capacidade de atuação do serviço público, modernizar procedimentos e incorporar tecnologia e gestão de risco à rotina de fiscalização. A iniciativa nasce com o objetivo de tornar o país mais competitivo, eficiente e preparado para atender às exigências sanitárias dos mercados internacionais.
A discussão começou em 2021, com o Projeto de Lei 1.293, mas seu desenho técnico remonta a 2020, quando as primeiras minutas foram elaboradas pelo Ministério da Agricultura. Desde então, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) conduziu as articulações políticas e técnicas para consolidar um texto capaz de modernizar a legislação, cuja base normativa ainda refletia práticas e limitações da metade do século passado.
Na Câmara dos Deputados, a proposta teve duas relatorias estratégicas. O deputado Domingos Sávio, responsável por analisar o texto na Comissão de Agricultura, defendeu a superação de normas antigas que limitavam o crescimento do setor e criavam entraves operacionais para as indústrias. Já na Comissão de Constituição e Justiça, o deputado Pedro Lupion, presidente da FPA, capitaneou a etapa final, assegurando o apoio político necessário para que a matéria avançasse ao Senado.
Lupion destaca que o novo modelo responde a um desafio estrutural: o crescimento do agronegócio em ritmo muito superior à capacidade de ampliação do quadro estatal. “Por falta de capital humano, o Estado não tem como manter sozinho toda a estrutura de fiscalização necessária. Precisávamos de um sistema capaz de dar agilidade, segurança e previsibilidade, sem abrir mão da autoridade pública”, afirmou.
No Senado, a relatoria ficou a cargo do senador Luís Carlos Heinze, que rejeitou emendas consideradas prejudiciais e reforçou a importância de atualizar o modelo brasileiro de inspeção. Para ele, a aprovação representa “modernização, mais segurança jurídica e maior capacidade de atuação do serviço oficial”, além de impulsionar a qualidade dos produtos e fortalecer a imagem sanitária do País.
A então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, hoje vice-presidente da FPA no Senado, sublinha que o autocontrole foi elaborado de forma colaborativa, com forte participação de fiscais, entidades representativas e setor produtivo. Segundo ela, o modelo alinha o Brasil às melhores práticas internacionais. “É uma evolução que reduz burocracias, dá segurança jurídica e consolida nossa referência global em sanidade e inspeção”, afirmou.
Vitória política e avanço regulatório
Um dos marcos recentes da implantação da lei ocorreu em junho deste ano, quando a FPA articulou a derrubada dos vetos presidenciais e restabeleceu o direito dos produtores rurais de fabricar bioinsumos para uso próprio — a chamada produção on farm. A decisão devolveu aos agricultores a dispensa de registro para esses insumos, desde que não haja comercialização, reforçando um dos eixos centrais do novo marco legal.
A etapa mais significativa, porém, foi concluída em 13 de novembro de 2025, com a publicação da Portaria 861 pelo Ministério da Agricultura. A norma regulamenta o credenciamento de pessoas jurídicas para prestar serviços técnicos de apoio à inspeção ante mortem e post mortem no âmbito do Serviço de Inspeção Federal (SIF). O texto estabelece critérios rigorosos, mecanismos de auditoria e punições proporcionais à gravidade de eventuais infrações. Também proíbe conflitos de interesse, como vínculos societários com frigoríficos ou bonificações atreladas a desempenho.
Mesmo com a ampliação de responsabilidades para empresas credenciadas, a essência do modelo permanece inalterada: o auditor fiscal federal agropecuário segue como autoridade máxima dentro das plantas industriais, preservando totalmente o poder de polícia do Estado. A fiscalização oficial continua responsável pela supervisão direta, auditorias e decisões técnicas, enquanto as empresas passam a integrar rotinas complementares que reforçam a segurança sanitária.
Ao comentar a publicação da portaria, Lupion classificou o novo marco como um salto histórico para o agro brasileiro. “Depois de quatro anos de construção intensa no Congresso Nacional, damos um passo definitivo para fortalecer quem produz, garantir mais segurança ao consumidor e elevar o padrão sanitário que apresentamos ao mundo. A modernização chegou com responsabilidade, transparência e sob comando do Estado.”
Impactos práticos
A implementação do autocontrole representa mudanças estruturais no dia a dia de frigoríficos, plantas industriais e de toda a cadeia produtiva. Entre os avanços esperados estão maior agilidade nas linhas de abate, redução de gargalos operacionais, reforço da rastreabilidade e aumento da transparência para o consumidor final. Além disso, o modelo fortalece a fiscalização oficial ao organizar, de forma mais eficiente, o uso de recursos humanos e tecnológicos.
A modernização também atende a uma demanda crescente dos mercados internacionais, cada vez mais exigentes quanto a controles sanitários, padronização e monitoramento contínuo. Com um sistema mais robusto, o Brasil amplia sua competitividade e consolida sua imagem de país capaz de oferecer produtos seguros, de alta qualidade e fiscalizados com rigor.
Para as lideranças que participaram da construção do modelo, o autocontrole representa equilíbrio entre eficiência e autoridade pública. “Não existe privatização da fiscalização”, reforça Lupion. “O poder de polícia continua 100% com o Estado. O que muda é que as empresas assumem responsabilidades técnicas adicionais, enquanto o auditor fiscal agropecuário mantém a palavra final”.
Com a regulamentação concluída, o setor inicia um novo ciclo de modernização, que promete transformar a defesa agropecuária, reduzir entraves históricos e posicionar o Brasil em um patamar ainda mais elevado no cenário global.