OPINIÃO

Quando a torpeza invade os tribunais

É de conhecimento popular a fábula do sapo e do escorpião na qual o escorpião pede ajuda do primeiro para atravessar um rio e este concorda desde que garantido que não será picado. O escorpião se compromete, mas, em meio à travessia, pica o sapo e condena ambos à morte. Nessa estória, infere-se que as ações torpes e desonestas não prejudicam apenas terceiros, mas impede o benefício de quem também as pratica.

            Isso está definido juridicamente enquanto princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, isto é, o comportamento desleal de um indivíduo impede a concretização de direitos e objetivos, ainda que legítimos. Quem busque manipular a justiça a seu favor (ocultação de fatos, apresentação de provas falsas ou distorção da verdade) comete fraude processual e, além de prejudicar a integridade do sistema, deslegitima suas próprias pretensões.

            Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão recente, decidiu pelo afastamento da proteção do bem de família sobre um imóvel por ter havido violação da boa-fé objetiva. Os executados, de forma dolosa, após a inadimplência, teriam vendido o imóvel a um amigo da família que teria conhecimento das dívidas, configurando tentativa de fraude a credores.

            O bem de família é um instituto jurídico que garante que o imóvel de habitual residência dos devedores não pode ser utilizado para saldar qualquer tipo de dívida a fim de garantir o direito à moradia. No entanto, existem exceções, nas quais é possível a execução do imóvel para cumprimento da dívida, como dívida de pensão alimentícia, dívidas de IPTU e taxas e contribuições de condomínio, hipoteca, dívidas de financiamento para construção ou aquisição do imóvel, entre outras.

            Importante salientar que há amplitude no conceito de família para albergar a proteção do imóvel, incluindo pessoas solteiras, separadas e viúvas. Assim, a família é compreendida como núcleo doméstico, não importando se formal ou informalmente constituído, alcançando pares heteroafetivos e homoafetivos.

            A máxima de proteção dessa norma é, pois, a garantia da moradia digna, de modo a impedir o desabrigo das famílias. O parâmetro crucial para aferir se há fraude ou não está na verificação da destinação do imóvel, qual seja, de moradia à família. Por esse motivo, o mesmo tribunal garantiu a proteção do bem de família em outra ação em que o devedor, ao ter ciência da execução, fez doação ao filho, sendo que o imóvel permaneceu como única residência habitual do núcleo familiar.

A proteção do bem de família, embora seja uma garantia fundamental para assegurar o direito à moradia, não pode ser utilizada como escudo para fraudes, como no caso do STJ que afastou essa proteção em razão de uma tentativa dolosa de frustrar credores. Contudo, a aplicação desse princípio deve sempre observar o contexto e a destinação do imóvel, garantindo que o núcleo familiar, independentemente de sua conformação, não seja privado do direito à moradia digna quando não houver desvio de finalidade. Assim, o equilíbrio entre a proteção legal e a boa-fé é essencial para assegurar justiça e evitar a manipulação indevida das normas jurídicas.

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito