Opinião

Coluna Direito da Família: Da discórdia à igualdade ideológica

Da discórdia à igualdade ideológica

Desde Caim e Abel, a relação entre irmãos pode ser sinônimo de discórdia. Talvez o relacionamento que melhor descanse na corda bamba do equilíbrio entre amor e ódio. Isso se deve, em certa medida, às disputas, inclusive de direitos, entre aqueles.

Historicamente, a continuidade da família, com a manutenção da propriedade e do fogo sagrado, foi garantida a apenas um: o primogênito. Em uma profunda diferenciação de gênero, de origem e de idade, havia o privilégio de um perante aos demais. E os privilégios, ainda que sejam meramente afetivos, são fonte de discórdia.

Na estrutura patriarcal, os homens têm dignidade e, portanto, direitos, em detrimento das mulheres (por muito tempo consideradas incapazes de gerenciar a si próprias; caladas pela estrutura social e jurídica). A igualdade entre gêneros, ainda que teórica, ganhou corpo com a Constituição Federal em 1988. Apesar dos esforços legais, a práxis desvela, diariamente, a retórica de tal discurso.

Em decorrência da profunda influência da ética cristã na sociedade romano-germânica, o casamento remanesceu como fonte legitima da verdadeira família aos olhos, inclusive do Estado laico e democrático. Assim, os filhos que não fosse fruto desse negócio jurídico afetivo, não estavam igualmente tutelados. Além das chagas sociais, com denominações pejorativas, como bastardos, ilegítimos, espúrios, adulterinos, carregavam o peso da indiferença jurídica, não lhes sendo garantidos, em alguns casos, direito ao nome ou a alimentos. O mínimo existencial lhes foi negado por longa data, em razão da tutela do matrimônio. A punição ao adultério não recaia sobre os ombros do adúltero, mas do inocente.

A atual Constituição Federal, em decorrência de constructos históricos e sociais, vedou a discriminação entre irmãos. Filho é filho, independentemente da origem, do gênero e da idade, tendo os mesmos direitos. E isso se estende para além da mera relação consanguínea, alcançando as relações socioafetivas. Portanto, um padrasto, que age como pai, pode se ver compelido a garantir os mesmos direitos a seus filhos consanguíneos e socioafetivos, pois ambos são equiparados por lei. Não importa o fio que tece a relação jurídica entre pais e filhos, importa o resultado do árduo trabalho de responsabilidade daquele que educa por amor. E se o faz pela afetividade, certamente não se sentirá compelido.

Além disso, assim como ocorreu com o irmão pródigo, todos os filhos terão direito equivalente, não cabendo mais aos pais a potestade (poder absoluto) sobre vida e morte dos filhos ou mesmo sobre a divisão patrimonial, mesmo que post mortem. Estende-se a todos, em igualdade de condições, o direito à chamada “legítima”, que equivale à parcela devida da herança dos ascendentes. Isso não impede, contudo, o adiantamento da legítima, desde que não prejudique os demais no momento da partilha. Não deve, como regra, haver favorecimento de um em detrimento dos demais.

No entanto, aquele que atenta contra os direitos mais caros dos pais, como a vida, a integridade física, a honra ou afetividade (com o abandono), poderá ser punido juridicamente com a deserdação. Afinal de contas, as relações entre os sujeitos amoldam a personalidade do indivíduo e, portanto, devem ser permeadas de ética e responsabilidade, sob pena de punição.

Ser irmão é fazer uma escolha consciente de estabelecer relações de igualdade, entendendo que não há hierarquia que os diferencie, conceito este aproveitado politicamente para definição de cidadania. Ainda que ideológico, tal conceito deleita-se, tranquilamente, com o âmago da dignidade, na medida em que esta relaciona-se ao reconhecimento do valor intrínseco do outro, independentemente da sua utilidade.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas