QUEM É DIGNO DE HERDAR?
Cascavel e Paraná - Quando a sociedade se avoluma em discutir quem paga ou não o jantar em um encontro amoroso, percebe-se que as regras sobre o vínculo entre as questões patrimoniais e afetivas podem estar em descompasso com os interesses sociais. Não à toa, a proposta de alteração do Código Civil, que ainda está em trâmite, mexe com as estruturas de vários pontos das questões patrimoniais e sucessórias. Não se pode perder do horizonte o fato de que, historicamente, o direito civil, especialmente o sucessório, se desenha, essencialmente, a partir do patrimônio, do patriarcado e da noção de família nuclear burguesa – que invisibiliza questões sobre o trabalho reprodutivo e afetivo.
Em razão do crescimento das famílias reconstituídas e, portanto, da complexidade das dinâmicas familiares, bem como do ingresso da mulher no mercado de trabalho, existem inúmeros questionamentos sobre as atuais regras sucessórias.
Além disso, dada a arraigada concepção de patrimônio em relação à divisão sexual do trabalho (considerando que no capitalismo patriarcal as escolhas afetivas, a maternidade e o cuidado impactam, estruturalmente na despossessão feminina), mas também em relação ao empoderamento feminino (não homogêneo a todas as mulheres, sendo que ainda permanecem maiores os impactos de acesso às mulheres negras, periféricas, com deficiência ou LGBTQIA+), incrementam-se os dissensos quanto à herança pelo cônjuge, tida como possível enriquecimento sem causa.
Uma lógica questionável diante da “viralização” dos modelos patriarcais de relacionamentos conjugais, como a “esposa troféu” ou daquela que abdica da carreira profissional para o cuidado do lar. Longe de haver julgamento sobre essas escolhas, elas impedem um olhar de equidade de escolhas e patrimônio entre o casal, o que pode levar a prejuízos de longo prazo, especialmente às mulheres.
O projeto, a respeito do tema, retira o cônjuge como herdeiro necessário, de modo que ele pode ser totalmente excluído da sucessão por meio testamentário, não lhe sendo devida a reserva da legítima (valor mínimo devido aos herdeiros de que o testador não pode dispor). Ainda, põe fim à herança dos bens particulares do cônjuge, restando a meação dos bens adquiridos na constância da união.
Tais disposições se conectam com a previsão do cuidado e da vulnerabilidade enquanto critérios para a distribuição sucessória, seja do cuidado para o pagamento imediato de uma parcela do patrimônio devido ou para exclusão do herdeiro (quando não prestar assistência material ou abandonar afetivamente, de maneira voluntária e injustificada), seja da vulnerabilidade para previsão de tratamento desigual entre os herdeiros. Nessa perspectiva, é relevante o reconhecimento do cuidado e da vulnerabilidade para a garantia da igualdade substancial e não meramente formal.
Contudo, é relevante considerar que, para além da provável maior judicialização dos conflitos e ressentimentos familiares, pela subjetividade dos elementos dispostos na regra, o cuidado não pode ser tratado como símbolo de redenção, porque raramente é heroico. Seu reconhecimento é imperioso, até porque exercido majoritariamente de maneira não remunerada, mas não pode se tornar elemento moral de consideração de dignidade do herdeiro.
Evidencia-se a necessidade de mais debates sobre os temas, sem a falsa pretensão de neutralidade do texto normativo, considerando as estruturas históricas que moldam a realidade sobre a acumulação de patrimônio a fim de evitar que os elementos de cuidado e vulnerabilidade não se limitem a meros filtros subjetivos e moralizantes para perpetuar desigualdades já existentes e naturalizadas. O elemento de ruptura do sistema pode ser instrumento de manutenção da lógica desigual a depender de como for manejado pelo sistema de justiça.
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito