Anestesia
– Sente aqui? –Não. – E aqui, sente alguma coisa? – Nada, não sinto nada. Campos cirúrgicos colocados. – Podem começar! Corte. Sangue. Um pouco do cautério. Bzzzz!!! Olho para a paciente e nenhuma reação. Já fiz isso centenas, milhares de vezes nesses 10 anos trabalhando como anestesiologista, no entanto, pareceu a primeira. Fiquei surpreso por pensar assim, sem mais, nem menos. Como pode? Estou voltando a me apaixonar por anestesiologia?
A rotina nos embrutece, nos deixa dormentes, sem tato, sem enxergar. O trabalho, a correria, as responsabilidades, tudo desce como um véu sobre os nossos olhos e deixamos de perceber. Há pouco mais de um século isso causaria um espanto imenso (como realmente causou). Fogo, roda, escrita, imprensa, luz elétrica, anestesia! Hoje algo bem corriqueiro, porém muito indispensável. A cirurgia só pôde se desenvolver após o surgimento da anestesia. Antes o trabalho cirúrgico se resumia em amputações, cortes superficiais, suturas. Tudo muito rápido e mortal. Com anestesia o corte se aprofunda, a vida ganha uma nova chance e chegamos, literalmente, ao coração do homem.
A divulsão continua, tecidos afastados, puxados, cortados. Nada. Nenhuma reação. Sem dor. Vontade de chamar as pessoas nesse exato momento e dizer: “Olha, ela não sente nada!”. Certamente que eu seria taxado de louco. “Dr, você já fez isso muitas vezes!”.
Sigo pensando. Seguem cortando. Mais fundo, mais fundo. A paciente olha para mim e sorri. Será que ela adivinhou o que eu estou pensando? Ela sorri e fecha os olhos esperando. Ela sorri, mas seu abdome está aberto! Sangue escoa e empapa as compressas, as luvas e os campos. Aspiração, afastador, líquido amniótico.
O bebê é puxado lá de dentro. Salta para o mundo roxo e com frio (será que nascer também dói?), inspira, faz uma careta e chora. A mãe sorri, chorando. Todos sorriem. O útero se fecha. Eu ajudei àquela pessoa a chegar neste mundo são e salvo. Não fui eu quem o puxou para fora, mas sem aquela agulha, sem a minha anestesia como teria sido? Morte. Para a mãe, para o bebê.
Anestesia é uma morte também, mas parcial. Como pode? Volta-se dela! Uma parte do corpo ou o corpo todo fica inerte, morto e depois retorna. Isso eleva a prática da anestesiologia mais ainda. Andamos no limiar, na fronteira infinita da morte. Se ninguém voltasse não haveria anestesia. Isso intriga e assusta muito. E se não voltar? E se esse sono não terminar? Medo da morte, medo da anestesia. “Doutor me faça voltar!”, “Doutor, estou em suas mãos!”. Ouço muito isso.
Deus? Não, não somos Deus. Esse poder nos foi concedido. Usamos esse pequeno toque divino, esse “truque” que aprendemos, tão pequeno para a Divindade, mas imenso aos nossos cérebros mortais e falíveis.
Em nível celular, sabemos o que acontece. O que explica isso. Neurônio, membrana, bloqueio da despolarização! Sim, eu também sei, mas isso não importa agora. É fato. Existe. Está ali! Ninguém pode enxergar, mas sua presença é percebida. Seu efeito e o que disso resulta: vida e segurança. Certeza de voltar.
Caê Martins – CRM/PR – 20965.
Carlos Eduardo dos Santos Martins – Médico Anestesiologista.