
? Ficamos ricas sem precisar ganhar na Mega Sena. Ganhamos em qualidade de vida, claro, mas principalmente em conteúdo, espiritualidade, diversidade ? enumera Andreia, socióloga de 47 anos, que alugou o apartamento de Laranjeiras para um amigo francês de passagem pela cidade.
Estudante de dança, Lara, 19, completa:
? Antes, eu morava no apartamento da minha mãe, com as regras dela. Sinto que essa casa é mais minha. Tenho maior poder de escolha. E a família cresceu. Quando tenho uma questão com a minha mãe, converso com algum dos meninos.
Enquanto termina de se arrumar para trabalhar em sua suíte, localizada no mesmo corredor onde fica o quarto da filha (são nove dormitórios divididos em dois andares), Andreia vai além.
? Quando morávamos sozinhas, eu tinha que falar para a Lara lavar a louça e reclamava quando chegava tarde. Aqui, deu uma diluída. Tenho outros focos. E minha filha participa de todas as atividades. Acho que viver numa casa compartilhada deveria ser uma escola para todos os adolescentes de classe média do Rio de Janeiro ? opina.
O estilo de vida em voga é inspirado num movimento que nasceu na década de 1970, na Dinamarca, e foi oficialmente batizado como ?cohousing? pelo arquiteto Charles Durrett, nos idos de 1988, na Califórnia. Bem popular nos Estados Unidos e em diversos países da Europa, as comunidades urbanas começaram a ganhar força no Brasil em 2013, inciando por São Paulo. No Rio, pipocaram no último ano, da Zona Sul à Zona Norte. E a tendência, também chamada ?coliving?, dizem os especialistas no tema, é de crescimento.
Numa primeira olhada, o esquema lembra a logística das repúblicas estudantis, mas basta tomar um café com um dos adeptos para entender que economizar a grana do aluguel não é a questão central. Trata-se de uma opção feita por pessoas de todas as idades, amigos, amigos dos amigos, casais, irmãos, mães e filhas. A maioria é formada, pós-graduada e bem-sucedida profissionalmente. O objetivo é compartilhar experiências e viver da forma mais sustentável possível.
? O que está acontecendo hoje é um movimento mundial muito lindo, uma transição para outro modo de habitar o planeta. Há um anseio humano em recuperar o que foi sugado pelo sistema. É uma transformação onde tecer vínculos comunitários é essencial ? analisa a arquiteta e pesquisadora Lilian Lubochinski, fundadora de uma consultoria chamada Cohousing Brasil.

Para apoiar a gestão consensual do espaço, são estudados os conceitos da Sociocracia e do Dragon Dreaming, que visam uma organização não hierárquica, horizontal e colaborativa. Para completar, de 15 em 15 dias, os moradores d?acasa se reúnem num grupo de Comunicação Não Violenta (CNV), método desenvolvido pelo psicanalista americano Marshall Rosenberg, que apoia o estabelecimento de relações de parceria e cooperação com base na empatia.
? Morando conjuntamente, as fundações da casa não são as pilastras de concreto. São as relações. E, se as relações não estiverem bem, a casa desmorona ? observa Thiago Saldanha, de 30 anos. ? Viver de forma compartilhada é passar da lógica da escassez para a lógica da abundância.
Semana passada, o último morador a chegar foi Washington Ferreira, de 48 anos.
? Eu estava de saco cheio da individualidade. Vim em busca da coletividade, desse aprendizado ? conta o baiano radicado em Minas Gerais, que há 12 anos morava num quarto e sala em Copacabana.
Massoterapeuta, a carioca Elisabete Amorim, de 30 anos, conversava com um cliente sobre a vontade de viver em comunidade quando ele comentou que era dono de uma casa fechada há dois anos, que não conseguia vender. Ela falou sobre a possibilidade de alugar a propriedade com amigos, esses amigos sondaram outros amigos, os interessados fizeram uma reunião e, em um mês, nasceu acasa.
? É um desafio diário, um resgate das relações que ficaram perdidas. Em grupo, você se depara com várias questões que fugiria se estivesse sozinha num apartamento. Os outros são nosso espelho. E isso acelera o processo de autoconhecimento ? avalia Elisabete.
Nova-iorquina baseada no Rio, a antropóloga Sadhana Sokol, de 32 anos, concorda:
? Fácil, não é. Mas há um alinhamento que facilita a harmonia da casa.
Quando há conflito, tudo se resolve na base da conversa. Na roda de Comunicação Não Violenta ou no grupo do WhatsApp.
As dificuldades não impedem o encantamento pelo lugar. Há fila de candidatos a morador. Sábado passado, durante a abertura oficial d?acasa, ouvia-se repetidamente a frase ?Também quero morar aqui?. Foi um dia de programação intensa, com ?Meditação para o novo Brasil?, na sala de estar, e apresentação do grupo Tambores de Olokun, no quintal.
? Abrimos a casa para mostrar que é possível resgatar esse espírito comunitário mesmo habitando grandes centros urbanos. Existem muitos imóveis ociosos no Rio. Esperamos que o nosso projeto possa dar ânimo à criação de outras casas coletivas na cidade ? explica Thiago Saldanha.
A inauguração da casa foi produzida por moradores e colaboradores, com contribuição voluntária de 300 convidados.
? Além de festas, promovemos workshops. Almejamos que um dia acasa seja autossustentável ? diz Bruno Rosostolato, economista de 35 anos.

Foi o gosto por moda e por design que uniu a paulistana Paloma Christiansen, o carioca André Felipe Bispo e os mineiros Marcela Santiago e Francisco Rath, o Kiko ? todos com seus 20 e poucos anos. Sinal dos tempos, os quatro se conheceram através das redes sociais.
? Eu seguia a Paloma no Instagram. Era fã do estilo dela. Acabamos virando amigas e ela me falou que tinha uma vaga na casa ? conta Marcela. ? O que nos une também é a paixão pelo Rio. Somos muito conectados com a praia. Eu não tinha condições de pagar aluguel de um apartamento de frente para o mar sozinha. Juntos somos mais fortes.
O quarteto e as agregadas oficiais, Fernanda Bradaschia e Madalena Godinho, continuam abastecendo as redes, agora com a hashtag #legalaje.
? Caprichamos na cenografia dos eventos que rolam na nossa laje, que já virou um point entre nossos amigos ? conta André.
O sentido de comunidade surgiu de forma espontânea na casa. Os três andares, atualmente, são divididos em quatro apartamentos. E há determinados ambientes compartilhados, como a cozinha e a famosa laje.
O imóvel é propriedade do ator e fisioterapeuta Paulo Cesar Rocha, conhecido pelo personagem Paulo Cintura em ?Escolinha do Professor Raimundo? (?Saúde é o que interessa, o resto não tem pressa?). O primeiro a chegar foi Kiko, namorado de Paloma.
? O nosso encontro é abençoado pelo Paulo Cintura. Todo dia de manhã eu convoco a comunidade para fazer ginástica na varanda ? brinca Kiko, modelo e ator de 25 anos.
Enquanto modelos de coliving começam a ser ensaiados em solo carioca, estudos acadêmicos avançam sobre o tema. Integrante do movimento Cidades em Transição, a educadora Taisa Mattos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi à Alemanha pesquisar sobre modos de vida sustentáveis.
? Visitei um antigo prédio, desocupado após a Segunda Guerra. Lá, cada núcleo familiar mora em seu quarto, com sala de TV, lavanderia e cozinha partilhadas ? conta Taisa. ? O coliving surge como uma proposta que pode dar certo mesmo num mundo em que as pessoas estão acostumadas a valores individualizados, pois a ideia é manter o espaço privado de cada um, só que de forma otimizada.
Maior autoridade em cohousing no Brasil, que viaja o país inteiro palestrando sobre o movimento, a arquiteta Lilian Lubochinski planeja construir, em breve, um empreendimento de casas compartilhadas focado no público da terceira idade, em São Paulo.
? É um trabalho com idosos que foram da geração hippie, que estão ?envelhecentes? e em busca de soluções mais adequadas para dar conta da longevidade ? explica a urbanista.
Por sua vez, a gestora de projetos carioca Gabriela Valente está desenvolvendo um coliving para ?mães solo?, em parceria com a amiga Priscila Accioly. As duas têm filhas pequenas e frequentam espaços de economia colaborativa, como os de coworking, primo, aliás, do cohousing.
? O objetivo é levar essa discussão para o âmbito público, uma vez que se trata de uma solução coletiva para a cidade. Em Milão, por exemplo, a prefeitura concede isenção de IPTU para colivings ? compara Gabriela. ? No Rio, existe uma leva enorme de mulheres com vontade de ensaiar essa nova forma de convivência, essa nova forma de criar os filhos, com creches em casa e unschooling. Famílias mononucleares não são mais uma forma sustentável de se viver. Não é um plano. É a saída.

? Começamos a desenvolver um projeto para trabalhar em casa também, pelo menos por dois dias na semana ? conta Adriana. ? Por que não trazer crianças aqui da Tijuca para a nossa casa e dividir com elas a experiência de se viver numa comunidade?
Os outros dois moradores são o cineasta Lucas Macedo, de 24 anos (que vem a ser irmão de Ana Laura), e a professora de ioga Natalia da Costa, de 26 (seu namorado, o animador André Perlingeiro, de 36 anos, é o agregado oficial da Casoca).
? Fizemos um casocamento ao entrar na casa. No ritual, lemos as nossas intenções ? conta Ana Laura.
? E cada um plantou uma árvore na hortinha que temos no terraço ? completa Adriana.
A Casoca tem cinco quartos: dois são individuais, dois são compartilhados e um é usado como sala de terapias. Todos os ambientes foram decorados com móveis doados ou reaproveitados. Paletes fazem as vezes de sofás e gavetas encontradas em caçambas, na rua, foram forradas com chitas para virar módulos de estante. Os seis dividem o aluguel e todas as contas, penduradas numa cortiça. Outro quadrinho elenca os responsáveis por cada espaço da área comum ? cozinha, banheiro, sala.
? A cada mês, um de nós se candidata a ser guardião do dinheiro, guardião da limpeza, guardião da comida. A ideia é que seja rotativo para todo mundo experimentar tudo. Já tiveram alguns perrengues, claro, principalmente com comida. Dois meses atrás, a casa ficou totalmente desabastecida ? conta Ana Laura. ? Eu tive um conflito e, como estava lendo Paulo Freire, que fala da muito da mudança através da revolta, escrevi um texto desaforado no nosso grupo do WhatsApp. Deu certo: fizemos reunião na mesma noite e resolvemos o problema.
Ana Laura conta a história enquanto é atentamente observada pelos demais moradores.
? Por mais que pareça complicado, com várias reuniões e divisões de tarefas, o objetivo da comunidade é simplificar a vida ? ela diz.
Adriana pede a palavra:
? Te fortalece muito dividir as questões diárias com outras pessoas. É uma força mesmo, diante de tantos problemas que estamos vivendo no país. A sensação é que podemos crescer juntos.

? Os jovens saem de Piracanga empoderados, com um potencial de criação muito grande e com vontade de mudar o mundo mesmo ? empolga-se Ana Laura.
Líder da Comunidade Tribo Inkiri de Piracanga, Angelina Ataíde esteve no Rio para uma palestra, mês passado, e ficou orgulhosa quando soube da criação da Casoca.
? Em Piracanga, além de vivermos em comunidade, oferecemos oportunidades para que outras pessoas venham para cá e tenham uma experiência de vida comunitária. São práticas muito transformadoras ? enfatiza Angelina. ? O que me encanta muito é a energia e o potencial de transformação dos jovens. O processo para eles é muito rápido e eles têm muita força de vontade para colocar em ação. A Casoca é um exemplo de comunidade urbana que nasceu inspirada por pessoas que passaram por Piracanga e hoje vivem seu sonho de comunidade na cidade inspirando mais pessoas nesse processo de transformação. A base de todo esse movimento de comunidades intencionais e casas compartilhadas é um despertar da humanidade para o valor da união. Essa é a base de uma nova humanidade que já surgiu e está se consolidando cada vez mais em diversas partes do planeta ? diz.
Diretor do documentário ?Ecovilas Brasil?, o carioca Rafael Togashida tem uma teoria singular para o movimento:
? A primeira grande virada acontece quando a humanidade deixa de ser nômade e começa a criar assentamentos praticando a agricultura. A segunda é a Revolução Industrial. E a terceira é agora, a era da colaboração. A primeira aconteceu em milhares de anos, a segunda em gerações e a terceira vai acontecer muito rápido, estima-se que em 20 a 30 anos. Na verdade, já está acontecendo.
