Cotidiano

Crítica: Stevenson em um hino à desaceleração e à serendipidade

2014 777278094-2014 770961032-img_0614.jpg_20141125.jpg_20141218.jpgRIO – Não se sabem as razões que levaram um jovem Robert Stevenson, com 28 anos, a atravessar a pé, sem guia e apenas na companhia de um burro, uma obscura região ao sul da França. Naquele início de inverno de 1878, o autor ainda estava longe da celebração literária: não havia começado a escrever seus principais sucessos e sequer reunia recursos financeiros para levar adiante o seu noivado com a americana Fanny Osbourne. Reza a lenda que o rompimento com a amada teria motivado a viagem, mas não há confirmações. O certo é que tudo no empreendimento se anunciava difícil, tanto em relação ao itinerário (quase 200km pelas então desconhecidas e selvagens Cevenas) quanto à época escolhida (em setembro, as montanhas da região se tornam geladas e inóspitas).

O escritor relatou todas as etapas dos 12 dias de viagem em um diário e, mais tarde, no livro ?Viagem com um burro pelas Cevenas?, recém-lançado no Brasil pela Carambaia, com ótima tradução de Cristian Clemente. Embora não seja nem o primeiro nem o último diário de viagem de Stevenson, a obra ganhou nos últimos anos um status de clássico entre os praticantes de caminhada na França. Sua popularidade ajudou a criar, em 1978, o Chemin Stevenson, uma trilha que reproduz o percurso original, atravessada todo ano por milhares de hikers (muitas das paisagens descritas não mudaram nada em mais de cem anos). Segundo os atuais responsáveis da Associação Stevenson, que atua na preservação do caminho, o autor teria sido o primeiro a defender o princípio da caminhada pela caminhada ? ?De minha parte, não viajo para ir a algum lugar, mas para ir. Viajo por viajar?, sustentou ele no livro.

2016 908591311-180.jpg_20160511.jpgQuando Stevenson chegou nas Cevenas, porém, não havia sinal de turistas ou aventureiros por lá. ?Um viajante do meu tipo era coisa até então inaudita naquele distrito. Olhavam-me com desdém, como um homem que planejasse uma jornada à lua?, pontuou, logo na primeira parada da viagem. Mas nem tudo era estranhamento. Oriundo de uma família presbiteriana, o autor encontrou nas Cevenas o palco da Guerra dos Camisards, revolta protestante que eclodiu em 1702 causando mais de 14 mil mortos, e que é descrita por Stevenson como o equivalente francês dos Covenanters escoceses. A julgar por seu registro, o espírito de resistência e o pendor ao isolamento ainda marcavam os cevenols na época ? na verdade, parecem marcá-los até hoje.

Ao passar por lugares emblemáticos do conflito ? como o vilarejo de Pont-de-Montvert, onde a revolta começou ? Stevenson vai em busca da alma camisarde, que se confunde com a geografia da região, uma ?paisagem sorridente, mas rude?. O autor também descobre as lendas do território, como a da Besta de Gévaudan, que teria devorado cem crianças. O livro, contudo, é muito mais do que um registro histórico e cultural de um distrito: trata-se de um hino à desaceleração e à serendipidade. Seu apelo atual é o perfeito contraste com o mundo das viagens otimizadas e programadas de hoje. A prosa de Stevenson respira num passo lento e desperdiçado, em sintonia com sua ética da caminhada, aberta aos encontros do acaso e aos imprevistos.

Alugada para carregar cem quilos de bagagem, a mula Modestine tem um papel central na história, lembra o jornalista Gilles Lapouge no posfácio: distraída, lenta e atrapalhada, ela atrasa o autor, obriga-o a seguir as piores estradas e a se meter em roubadas. Errando em território desconhecido em um misto de frustração e deslumbre um com o outro, Stevenson e Modestine cultivam uma curiosa síndrome de Estocolmo. Ora ranzinzas, ora deslumbrados, os dois viajantes subvertem a lógica do turismo profissional, que nascia na Inglaterra. Stevenson dá às vezes de cara com espaços que não valem a procura, ?uns cacos de vilarejo, com nenhuma rua específica, mas uma sucessão de espaços abertos?, e se pergunta: ?Que vieste ver aqui??. Logo percebe que não importa tanto aonde se chega, mas como se chega. Todo um modelo de deslocamento, no qual o viajante mergulha em sacrifício, solidão e integração, e se despe de sua ilusória sabedoria.

*Bolívar Torres é jornalista e escritor, autor do romance ?Não muito? (7Letras)

?Viagem com um burro pelas Cevenas?

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: Carambaia

Tradução: Cristian Clemente

Cotação: Bom

Preço: R$ 87,90