BRASÍLIA ? O novo chefe da Advocacia Geral da União (AGU), Fábio Medina Osório, disse, em entrevista ao GLOBO, que vai apurar possível desvio de finalidade cometido pelo ex-ministro José Eduardo Cardozo na defesa de Dilma Rousseff no processo de impeachment, ao classificar o processo como golpe de estado e “defender pedaladas como política de estado”. Ele aponta que a atuação de Cardozo na defesa da presidente afastada se assemelhou à defesa de um advogado criminalista. “Um advogado privado até poderia trazer teses extravagantes como essa, mas jamais um AGU poderia bradar contra os demais poderes de estado”, criticou.
Osório admitiu ainda que o governo substituirá a Medida Provisória que trata sobre acordos de leniência por um projeto de lei atualizando “pontos obscuros” da MP.
“Quando uma MP gera muito mais instabilidade do que segurança jurídica, em que as instituições fiscalizadoras não foram chamadas a participar, foi um erro brutal do governo Dilma”, disse.
Há processos relacionados ao impeachment ainda pendentes de análise pela AGU. O senhor dará andamento a essas ações, ainda que não atue mais na defesa da presidente afastada?
Ainda tenho que me pronunciar concretamente sobre esse tema, portanto é impossível antecipar uma opinião, mas já adianto que tenho uma visão muito crítica quanto a possibilidade da AGU defender pedaladas fiscais como política de estado. Não vejo como vislumbrar interesse público nesses atos impugnados, e com essa dificuldade também não se pode admitir teses de defesa encampadas pela AGU em prol de agentes políticos, sustentando como centro nevrálgico a linha do golpe de estado. Isso entra em confronto aberto com outros poderes, que pertencem ao mesmo país. Ou seja, me parece que a AGU incorreu em desvio de finalidade, o que poderá ser apurado. A AGU deve defender o interesse público, e no caso do processo de impeachment, o que se verificou foi uma atuação muito vinculada a interesses pessoais da presidente da República, e não tanto a defesa de um ato revestido de interesse público. Vou me posicionar no momento oportuno, vou esperar para ver as nuances dos processos que serão submetidos, até porque teremos processos com peculiaridades muito interessantes, como o caso de um ex-AGU depois se transferindo para o setor privado, passando à condição de advogado privado da presidente.
Isso poderia ser visto como uma irregularidade?
Não, isso apenas, do ponto de vista lógico, é uma das situações que o Brasil não vivenciou anteriormente, e suscita uma reflexão sobre o papel da AGU e qual o protagonismo que ela deve ter. Até porque nunca se teve antes um impeachment desta envergadura, no processo anterior não havia sequer AGU estruturada, e não houve atuação de advogado público em prol do ex-presidente Collor, que atuou com staff privado. Agora, a presidente afastada usou toda a máquina administrativa em seu favor para defender-se perante o Congresso Nacional valendo-se da tese do golpe de estado. Ou seja, qualificando outros poderes envolvidos nessa mesma situação como praticantes de um golpe de Estado. É uma situação que preocupa a AGU, porque ela também defende os outros poderes de Estado. Ela pode ter que defender a Câmara, outros poderes envolvidos e que estavam sendo qualificados como artífices de um golpe de Estado. É uma situação insólita e inédita na história da República do Brasil.
O senhor acha que o ex-ministro José Eduardo Cardozo politizou a AGU?
A AGU não deve ser um órgão politizado. Ela pode, claro, defender atos dos governantes, agentes políticos, deve defender a constitucionalidade dos atos impugnados tal como proclama a Constituição de 1988. Mas a AGU não pode desempenhar uma função de advogado criminalista de agentes políticos. Ela defende um ato impugnado e indiretamente agentes políticos envolvidos. Pode defender nomeação de ministros de Estado, atos questionados em juízo praticados por um presidente e até aqueles agentes políticos que sejam acionados judicialmente. O que temos que verificar é a fronteira que separa a atuação institucional da AGU de uma atuação que transborde para o plano excessivo.
Foi o que aconteceu com o seu antecessor?
Pelo menos a atuação no impeachment, quando a AGU passou a qualificar os outros poderes como autores de um golpe de Estado, na medida em que havia um rito autorizado pelo Supremo Tribunal Federal e que tramitava perante o Congresso Nacional, um advogado privado até poderia trazer teses extravagantes como essa, mas jamais um AGU poderia bradar contra os demais poderes de Estado uma tese desta envergadura.
Cardozo não deveria estar impedido de atuar na defesa de Dilma por conta das regras de quarentena?
Cabe à OAB definir se há impedimento ético para essa transição do ex-AGU. Antes, ele estava supostamente atuando na defesa da União Federal, de um agente político, em função do alegado interesse público inerente aos atos impugnados, as pedaladas fiscais e decretos sem número. Ao migrar para o setor privado, e desrespeitando a quarentena, ele estaria a defender interesses puramente privados?
A AGU saiu enfraquecida do processo de impeachment?
A AGU precisa recuperar sua credibilidade, sua dignidade institucional, resgatar compromissos com o interesse público e atribuições históricas, como a defesa da probidade administrativa, sem prejuízo a prevenções de ilícitos no setor público, e sem abrir mão das suas atribuições de defesa de atos impugnados, como quando se questiona nomeações de ministros de Estado, quando se atacam competências de agentes políticos. Mas a AGU não pode ser desvirtuada de suas funções republicanas.
A AGU acompanha negociações para acordos de leniência. Qual sua posição sobre esses acordos, criticados pela oposição?
Hoje, quando se fala nos acordos de leniência e no impacto que eles podem ter nesse ciclo punitivo, é importante que haja um diálogo interinstitucional. Isso agrega segurança jurídica para as empresas, para pessoas físicas, e todos os atores públicos que venham a estar envolvidos nesse tipo de solução consensual. Eu acredito muito em todo tipo de método de solução consensual, é muito importante essa solução porque ela é eficaz, basta notar a experiência da Lava-Jato. Ela é uma operação que tem se caracterizado por recuperação veloz de ativos a partir de pautas consensuais, delações premiadas, colaborações de investigados, que tem permitido rastreamento e recuperação de recursos desviados. Essa é uma característica central dos sistemas mais avançados, então temos que apostar sempre numa agenda consensual de composição dos conflitos. A AGU pretende avançar muito nessa agenda de conciliação e prevenção de conflitos.
Esse tema envolve uma polêmica sobre a Medida Provisória 703, que desobrigou empresas de admitir participação em crime para celebrar os acordos. O senhor defende esse ponto?
O Brasil necessita de segurança jurídica, e é papel da AGU dar segurança jurídica para que o Brasil receba investimentos privados e possa gerar emprego, crescer e ter estabilidade e voltar a ter selo de qualidade para investidores. Quando você tem uma MP como essa, em que gerou muito mais instabilidade do que segurança jurídica, em que as instituições fiscalizadoras não foram chamadas a participar, foi um erro brutal do governo Dilma. E esse erro foi a um custo altíssimo, porque se verificou que não houve nenhum acordo debaixo da MP 703, nenhuma empresa apostou fazer um acordo debaixo dessa MP.
Esse ponto de admitir a culpa também deve ser mudado?
O mais importante é que haja informações eficazes para a investigação. A responsabilidade da empresa é objetiva, então há uma discussão sobre a essencialidade de admissão ou não da culpa, que as instituições têm que achar um consenso. Mas, diria que o mais relevante é a essencialidade das informações para obtenção de provas que levem a responsabilização dos alvos das investigações, esse é o ponto central, e que haja recuperação de ativos desviados e que haja, portanto, resultados concretos a partir das colaborações premiadas, a partir do acordo obtido com aquela colaboração.
Que outras mudanças devem ser feitas?
Deve-se absorver críticas e pensar na reedição de um instrumento qualificado que traga segurança jurídica para o país, nesse paradigma de instrumento consensual. O ideário do instrumento consensual pra composição de conflitos, recuperação de ativos e punição de envolvidos em ilícitos é uma agenda moderna, que está em franca utilização nos países mais avançados do mundo, então não podemos abrir mão disso. Você apostar simplesmente nos processos judiciais ou administrativos não é uma realidade compatível com o interesse público, porque processos muitas vezes têm um desfecho imprevisível, e uma burocracia e um tempo de duração que não se sabe qual é. Enquanto que a celebração de acordos você tem resultados medidos pela sociedade, palpáveis. Precisamos de um regramento, pautado pelo interesse público, para que esses acordos sejam fechados com transparência e à luz de critérios normativos racionalmente rastreáveis e que possam ser acompanhados e controlados pela sociedade e instituições públicas.
Então vão deixar a MP caducar e ela será atualizada como outro projeto?
A MP 703 será alterada por meio de um projeto de lei que vai incorporar as críticas e ajustes necessários, que foram feitas quando essa MP veio à tona. Esse projeto de lei será gestado a partir de estudos coordenados pela AGU. A MP, prestes a caducar, certamente será repensada com outro instrumento normativo a partir de um diálogo muito mais qualificado e absorvendo as críticas já feitas a esse instrumento. Com um novo patamar de qualidade para que se busque segurança jurídica para esses atores, esse é o objetivo hoje.
Se houve pontos obscuros na MP 703, eles deverão ser saneados agora a partir de todas essas críticas lançadas. E serão saneados com absorção num novo instrumento normativo que poderemos colaborar para que ele possa vir a acontecer, através de um projeto de lei. Poderemos colaborar para que haja essa agenda construtiva, porque não podemos ficar paralisados, e temos uma condição de diálogo com essas instituições, TCU, Ministério Público, Ministério da Transparência, vários órgãos envolvidos. Houve uma discussão crítica de diversos pontos que poderão ser absorvidos.
Mas sobre a necessidade de admissão de culpa por parte da empresa…
Esse ponto não é o que trava essa MP. Não vejo problema numa empresa ter que admitir culpa, mas o fato de admitir culpa ou não pode ser secundário, porque a empresa pode admitir culpa e não trazer informações relevantes. Ou a empresa pode admitir uma responsabilidade objetiva, e o que é essa responsabilidade objetiva se não a existência de mecanismos organizacionais defeituosos? Se a empresa admite isso, que permitiram fraude ou corrupção, isso pode gerar a chamada responsabilidade objetiva. O que importa é se existia um compliance efetivo ou não, é uma área perfeitamente passível de saneamento do ponto de vista da AGU.
O senhor assume uma AGU sem status de ministério. Isso lhe incomoda?
Não me incomoda porque o AGU sobretudo é um advogado, e como tal se posiciona nesse tabuleiro, goza de prerrogativas constitucionais relevantes e precisa das prerrogativas que vão salvaguardar sua independência. Como é o caso, e a emenda constitucional deve garantir, da prerrogativa de foro e outras prerrogativas que se assemelham àquelas dos ministros. Uma discussão que compete ao governo, mas de modo algum isso é uma diminuição da instituição. O importante são as prerrogativas que ela detenha para que sejam assegurados predicados que protejam sua independência, no sentido de ela ter condição de litigar em juízo, de proteger o interesse público e exercer com tranquilidade suas atribuições, independentemente do rótulo, ser ou não ministro é absolutamente secundário nesse debate. É irrelevante do ponto de vista das prerrogativas.
Como a AGU deve tratar essa discussão sobre o cálculo da dívida dos estados e municípios com a União? Nos mandados de segurança impetrados por alguns estados há posicionamento da AGU dizendo que em nenhum momento se cogitou calcular a dívida por juros simples. Que saída o senhor vê como a melhor?
A AGU confia plenamente que a União sairá vitoriosa nesse processo. Temos condições de vencer esse processo, mas achamos que os entes federados devem vir compor acordo com a União, e nossa perspectiva é essa, compor um acordo para salvaguardar o interesse público. Obviamente temos o maior respeito pelo pacto federativo, mas é nessa direção que vamos caminhar. Porque, se formos para o embate judicial, temos confiança na vitória dos argumentos jurídicos sustentados pela AGU em juízo. Mas, mesmo assim, apostamos na composição consensual dos processos, desses diversos mandados de segurança. Apostamos nessa solução em homenagem ao pacto federativo e ao interesse público. E acredito que haverá velocidade e uma observância do prazo concedido pelo STF.
O senhor já conversou sobre isso com o presidente Michel Temer? Ele vem falando, desde que assumiu, em rever o pacto federativo e o valor de arrecadação que vai para a União, estados e municípios. Ele vem dando sinais nesse sentido.
O presidente Temer é uma pessoa conciliadora, e é nessa direção que caminhamos. A União acredita que tem razão jurídica, mas aposta na saída conciliadora, está muito bem estruturada juridicamente e a perspectiva é essa, a fórmula consensual é a que melhor pacifica o conflito. Existe um diálogo em curso com ministérios envolvidos, com órgãos intergovernamentais e com o próprio Judiciário. Esse diálogo é que vai produzir resultados.
Em que situação encontrou a AGU? Muita diferença entre sua expectativa e a realidade?
Fazendo um diagnóstico sobre as experiências mais recentes da AGU, percebo uma progressiva humilhação das carreiras. Um amesquinhamento da AGU, uma precária autoestima dos membros das carreiras, e a necessidade de resgatar a dignidade da instituição. Esse é o diagnostico preliminar, a premência de se buscar um trabalho de valorização das carreiras, de fomento à qualidade, à meritocracia e ao reconhecimento na sociedade. Isso é fundamental. A AGU é uma instituição de estado essencial à Justiça, e tem que ser percebida como tal. Vejo uma AGU que tem problemas materiais, pessoas desmotivadas, desvalorizadas nas últimas gestões e que precisam ser recuperadas, e as carreiras precisam, portanto, ser realinhadas com o ideário que deve nortear uma instituição desse porte.
O senhor fala em humilhação das carreiras. O que pretende fazer de diferente?
Primeiro ponto é aprofundar esse diagnóstico no plano concreto. Mostrar as mazelas, diagnosticar as deficiências e mostrar mais claramente as carências da instituição. De outro lado, a partir do diálogo, buscar os mecanismos de correção, seja no plano normativo, institucional ou governamental. E perceber qual o modelo de AGU que se quer para o Brasil. É óbvio que existem muitas alternativas que transcendem políticas de mera melhoria salarial, alcançada recentemente, e buscam patamares de qualificação das carreiras, de meritocracia, de valorização. Basicamente, é a partir da concretude dessas políticas internas que se vai alcançar esses novos patamares, e isso já envolve a gestão que a gente pretende ter, compartilhada com as carreiras e com a nova equipe que assume.
O reajuste salarial é uma das prioridades para a categoria?
As carências não se resumem à expectativas salariais, envolvem meta quanto à qualidade, estrutura material, afirmação na sociedade, prerrogativas, garantias e próprio reconhecimento na sociedade brasileira como uma instituição de estado essencial à Justiça. A AGU não deve ser um trampolim para outras carreiras de estado, a pessoa que faz um concurso para carreiras da AGU deve pensar na AGU como uma carreira permanente para a sua vida, altamente atrativa. Devemos pensar uma política de longo prazo e vamos plantar sementes nesse sentido.