Opinião

Estive na Venezuela. Ela pede socorro! (parte 1 de 2)

Estive na Venezuela. Ela pede socorro! (parte 1 de 2)

Fui à Venezuela fazer trekking no Monte Roraima. E o que era para ser uma viagem de autoconhecimento, superações, transposições e crescimento espiritual, acabou sendo também uma perturbação na alma, pela dor do ser humano que luta pela vida em situações degradantes e ignóbeis que um governante autoritário, na sua hipocrisia, impõe.

Depois de se juntar a um grupo de mais 15 turistas em Boa Vista e seguir até Pacaraima, onde nos encontramos com os guias da expedição, cheguei à Venezuela pela cidade de Santa Elena de Uairén, fronteira com o Brasil, dia 19 de fevereiro. Nesse dia, a cidade vivia sua normalidade, com um fluxo incrível de pessoas, comércio e vida. Perguntei ao guia se Santa Elena tinha a mesma situação do restante do país, no que ele me respondeu: “Não. Aqui é o paraíso da Venezuela. Nunca tivemos falta de comida nem confrontos, nada. É uma cidade muito tranquila, vivendo à parte do resto do país. A comida compramos em Pacaraima, no Brasil. A única coisa que falta na cidade é gasolina, que vem de tempo em tempo, mas vem”.

Seguimos até chegar a Paraitepuy, onde se inicia o trekking até a montanha. A expedição em si foi algo inexplicável, para resumir, mas pularei essa parte. Deixo para depois.

O que preciso externalizar de fato é a realidade bruta de um governante cruel, autoritário e mortal. Voltamos da montanha dia 25 e almoçamos na base de Paraitepuy, onde ouvimos que a fronteira estava fechada, mas que brasileiros estavam passando tranquilamente (doce engano).

Partimos de lá, rumo a Santa Elena de Uairén às 13h. Durante o percurso de carro até a fronteira, Santa Elena de Uairén, ouvia os motoristas trocarem informações pelo rádio, quando em uma conversa percebi que havia algo sério acontecendo na fronteira. Seguimos. No percurso mais um indício de algo errado: um comboio de aproximadamente dez ônibus passou por nós, deixando Santa Elena.

Quando chegamos à cidade, vi dois carros e um ônibus queimados; todo o comércio fechado e poucas pessoas na rua. Fomos levados diretamente para o Vice-Consulado Brasileiro, onde fomos recebidos por um representante venezuelano da Agência de Turismo que contratamos para a expedição e pelo vice-cônsul. Depois de nos explicar o que aconteceu na cidade, fomos orientados a não sair do Consulado. Eles nos ofereceram a pouca estrutura que possuem para nos acomodar da melhor maneira possível. Disponibilizaram internet para avisarmos as famílias, mas em seguida pediram para desconectarmos para que pudessem conversar com as autoridades brasileiras. A internet é muito ruim lá.

O que nos foi dito:

  • A fronteira foi fechada quinta-feira, dia 21, quando tentaram entrar com ajuda humanitária.
  • O confronto armado começou na sexta, e foi até domingo, período em que 45 pessoas morreram e aproximadamente 140 ficaram feridas, além de vários desaparecidos.
  • O confronto foi violento, com troca de tiros, mortes, feridos, ônibus e carros queimados e destruição pelas ruas.
  • O Governo Brasileiro, o general que estava na fronteira e o vice-cônsul
    estavam negociando nossa liberação para atravessar a fronteira, mas sem
    previsão.
  • Um grupo de turistas havia sido liberado na noite anterior.
  • Éramos o último grupo de turistas naquela região da Venezuela.
  • Eles souberam que estávamos na montanha assim que tudo começou, pois a Agência de Turismo informou as autoridades imediatamente sobre nosso grupo. Estavam à nossa espera.
  • As negociações para nossa liberação haviam iniciado mesmo antes de
    chegarmos à cidade.
  • A situação era delicada demais, mas os esforços eram intensos (e de fato o vice-cônsul foi incansável até conseguir a liberação no dia seguinte).
  • O Exército Brasileiro estava à nossa espera com todo o apoio necessário no Brasil.
  • Apesar de a cidade estar tranquila, não era prudente sair do Consulado, pois ainda havia perigo.

O que EU vi e ouvi:

Informações desencontradas sobre a “tranquilidade” da cidade: Conversei com moradores brasileiros da cidade que estavam na embaixada para atravessar a fronteira também. Eles disseram que havia toque de recolher e que os militares circulavam pelas ruas à noite, e que era perigoso. E funcionários do Consulado diziam que estava tudo tranquilo, que o toque de recolher não existia, e que os militares estavam só na fronteira (mas não era para sair do Consulado, entende o desencontro de informações?)

  • Vi venezuelanos e brasileiros que lá vivem assustados, com medo, querendo sair do país a qualquer custo.
  • Relatos de venezuelanos sobre o horror que foi o confronto armado, sobre as 45 mortes. Vi uma foto (mostrada por uma venezuelana) com a primeira vítima: três pessoas em uma moto, a pessoa do meio, aparentemente um adolescente, estava morta. Jamais me esquecerei dessa imagem. Vi fotos do confronto, com ruas bloqueadas, coisas queimando, pessoas em desespero, lutando pela vida.
  • Relatos da crueldade de um “presidente” ditador, que não tem limites para camuflar o que acontece de fato no país.
  • Dois fatos são estupidamente cruéis: a) na segunda-feira pela manhã aconteceu uma limpeza na cidade para parecer tudo normal como se nada tivesse acontecido; e b) não me recordo a data, mas enquanto os populares velavam os mortos no confronto, militares e “simpatizantes” do governo organizaram um show na praça para dizer a todos que estava tudo bem, tudo normal, de novo, como se nada tivesse acontecido. Isso realmente me deixou estarrecida…
  • Relatos de que militares estavam entrando em hotéis e revistando todas as bagagens dos hóspedes e pegando coisas de valor.
  • Relatos de que vieram pessoas de fora da cidade (provavelmente pagas),
    enviadas pelo governo, para apoiar os militares e fazer o que tinha que ser
    feito, e para mostrar que o governo tem apoio de populares (isso talvez explique o comboio de ônibus que encontramos no caminho).
  • Relatos de que os militares tiravam os feridos do hospital e os levavam presos.
  • Relatos de que uma senhora foi assassinada na comunidade de San Francisco simplesmente porque atravessou dois cones na rua.
  • Pedidos para que divulguemos a verdade em nosso país.
  • Relatos de que o Exército venezuelano não tem comida para os soldados.
  • Relatos de que viram em outra cidade famílias procurando comida no lixo, e comendo lixo.
  • Pedido e desejo de venezuelanos de que haja uma intervenção militar externa com urgência para resolver a situação.

Um único canal de notícias, do próprio governo. Por acaso estavam transmitindo um evento em uma praça pública, onde um homem defendia Nicolás Maduro, dizendo que quem precisa de alimento é a Colômbia, e questionando “quem os brasileiros pensam que são, para enviar ajuda humanitária? Não precisamos, podemos comprar o que quisermos, não precisamos de nada…”

Isso me deixou enlouquecida. Comentei com o grupo: “É, eles não precisam, ELES que estão no poder, porque o resto do povo…”

Ao ver e ouvir tudo isso e mais, tive certeza de que nós não sabemos o que de fato acontece naquele país. Há muito mais crueldade no “regime” político do Governante da Venezuela do que supomos.

Sobre o regime político na Venezuela, oficialmente é um regime democrático, mas na prática não é bem assim. Com características fortes de comunismo, o sistema autoritário/ditatorial, implantado por Hugo Chávez e mantido por Nicolás Maduro, transforma a democracia em selvageria, deixando o povo desesperado e impotente.

Eu me coloquei no lugar deles e percebi que, na verdade, eu era uma deles naquele momento. Estava lá, com mais 19 brasileiros (mais quatro turistas que estavam sem agência de turismo se juntaram a nós), sentindo a dor deles; vivendo a situação deles; esperando por uma solução como eles; pensando no que seria depois de alguns dias se não nos autorizassem a sair (a cidade tinha somente mais nove dias de suprimentos nos supermercados); fazendo as contas de quanto dinheiro o grupo tinha para planejar os gastos e dar prioridade para alimentação; negociando as diárias na pousada que conseguimos; economizando cada centavo para uma necessidade; entre outras coisas.

A única diferença entre eu e os venezuelanos naqueles momentos era que eu tinha um lugar para voltar, eles não.

Em uma situação extrema, ou você enlouquece ou você se mantém lúcido para pensar e agir. Eu decidi pela lucidez, por “matar” as emoções e pensar estrategicamente. Mas quando um venezuelano conversava comigo, tudo mudava. As emoções fluíam e a lucidez se esvaía, dando lugar a um sentimento de raiva, desespero por não poder ajudar e dor, muita dor. Nunca a dor de alguém doeu tanto em mim. O que mais perturba é que são inocentes pagando um preço altíssimo, às vezes pagando com a vida, uma luta de sobrevivência, em um país cujo presidente mata seu povo de fome alegando defender seu petróleo. Na real, defender seu petróleo é só uma desculpa para impor sua insanidade brutal.

E o que mais choca é que há muitas pessoas intelectuais, professores, artistas, que defendem Mauro e sua ideia absurda de comunismo. E talvez isso ocorra porque eles nunca passaram fome; não estão lá para ver e sentir (como eu estive); têm seu rico dinheiro, seus bens materiais (carros importados, casas superconfortáveis); têm abundância de água, combustível, comida, tudo; amam a riqueza que possuem; ostentam suas roupas de marca, caríssimas, pagas por seus altos salários e cachês; e por aí vai. Gostaria de ver essas pessoas vivendo lá, nas condições que o povo venezuelano vive, onde um professor tem um salário de R$ 40,00 mensais, onde 10 mil litros de água custa R$ 200,00, onde o leite é artigo de luxo, onde a quantidade de combustível é limitada a 30 litros por pessoa por semana (quando estas têm dinheiro para comprar, e quando há combustível). Essas pessoas… nunca a hipocrisia foi tão absurda…

Outra coisa que me choca é que a história conta os horrores de regimes
autoritários/ditatoriais, como o Stalinista, que matou 7 milhões de ucranianos de fome, um genocídio contra a humanidade. Stalin sequestrou toda a comida dos ucranianos e fez um cerco nas fronteiras para matar o povo de fome, e assim executou um dos maiores horrores contra a humanidade. Mas o poder e a ganância falam mais alto né…

Não vamos longe. No Brasil, embora sejamos oficialmente um país democrático, nossos governantes fazem o que bem querem para eles mesmos: aprovam aumentos salariais absurdos; benefícios como auxílio-paletó, auxílio-moradia, seguranças e motoristas particulares, ajuda de custo para viagens etc e tal… E a saúde, a educação e a infraestrutura do País pedindo socorro; famílias passando fome; frio e sede. Ou seja, o que assistimos constantemente é que a maioria dos governantes não
trabalham pelo povo, não se importam. Defendem seus próprios interesses. Isso também é uma forma de autoritarismo. Eu me pergunto: quando foi que perdemos nossa humanidade? Quando foi que perdemos o pensamento coletivo? Quando foi que perdemos o respeito pela vida?

Sejamos mais humanos e pratiquemos a empatia. Se praticarmos a empatia, se nos colocarmos no lugar do outro, sentir suas dores, suas necessidades, suas alegrias, suas tristezas, talvez a gente consiga salvar a humanidade.
E, sobre a Venezuela, eu estive lá, e sim, o povo venezuelano pede socorro!

E antes que me julguem por qualquer palavra que tenha dito, eu afirmo: Sou a favor da igualdade, na riqueza e não na pobreza!

PS: Não sou historiadora nem cientista política nem nada disso. Sou um ser humano, curioso, que busca sempre a verdade dos fatos, e que viveu uma experiência incrível e dramática.

Mari Presrlak mora em Cascavel e foi personagem do Jornal O Paraná na reportagem “Cascavelense retida na Venezuela relata medo” do dia 27 de fevereiro.