BRASÍLIA – Expoente da criação do choro no violão, João Pernambuco (1883-1947), uma das fontes e inspirações de Villa-Lobos, ainda continua por aí. Pedaços de sua obra surgem de velhos baús. É o caso de um choro inédito, composto a quatro mãos com o parceiro Alfredo Medeiros (1893-1961) e apresentado num sarau em Ipanema, em 5 de novembro de 1958. Foi na casa da pianista Neusa França, que morreu no ano passado e deixou um grupo de fitas-rolo, de onde surgem pérolas de uma época.
O choro da dupla, de título desconhecido, foi localizado pelo pesquisador Alexandre Dias, pianista e diretor do Instituto do Piano Brasileiro (IPB). E disponibilizado, na manhã de ontem, no Acervo Digital do Violão Brasileiro (www.violaobrasileiro.com.br), um espaço dedicado ao instrumento, idealizado pelo pesquisador Alessandro Soares.
A música guarda o que há de contemporâneo no choro, que tem o DNA de Pernambuco: o baixo forte, solo do instrumento, escalas em sequência e os harmônicos. A gravação, somente o áudio, dura dois minutos. Medeiros anuncia rápido aos convivas de Neusa:
? Vou tocar um choro meu e de João Pernambuco ? diz Medeiros, sem citar o nome da obra, para em seguida tocá-la e acabar sob aplausos.
Herdeiro da tradição de Pernambuco, Medeiros e Villa-Lobos, o violonista Turibio Santos ouviu a peça e se encantou.
? É uma descoberta maravilhosa. E uma dupla novidade para mim: não sabia que o Alfredo Medeiros também tocava. Caramba! E como toca bem. Um choro lindo, com tudo de João Pernambuco. E profundamente bachiano ? disse Turibio ao GLOBO. ? Villa-Lobos dizia que a música é igual ao ser humano: tem cabeça, tronco e membros. A cabeça é a melodia; o tronco, a harmonia; e os membros representam o ritmo. É o que ouvimos aqui. O violão é um instrumento com várias vozes. É outra riqueza típica da composição desse pessoal. Fiquei emocionado.
PARCERIA INESPERADA
Outras opiniões sobre esse choro de Pernambuco e Medeiros, na mesma linha, estão expostas no Acervo Digital do Violão Brasileiro.
? Fico chapado logo nos segundos iniciais da fita. Além de fabulosa, é a cara de João Pernambuco ? diz Alessandro Soares, cuidador do acervo, que algumas semanas atrás divulgou outra gravação desse acervo, de um jovem Baden Powell empunhando seu violão. ? Ali tem tudo do Pernambuco, como a sexta corda em ré, os harmônicos típicos que usava em temas como ?Sonho de magia?, o molejo na linha dos choros ?Interrogando? e ?Pó de mico?. É curiosa essa parceria com Medeiros, que também é pernambucano e um dos grandes incentivadores do violão no Recife e no Rio, autor do lindo ?Choro triste?. Medeiros devia ser amigo do João. Mas não havia sinal até então de que os dois sentaram juntos para criar.
O acervo ouviu ainda o maestro Leandro Carvalho, atualmente diretor artístico e principal regente da Orquestra do Estado de Mato Grosso. Carvalho iniciou a carreira como violonista, gravando discos como ?Descobrindo João Pernambuco?, e é responsável pelo resgate de várias obras do compositor pernambucano, para ele, fundador do moderno violão brasileiro:
? Pernambuco utilizava, dentre outros recursos, posições fixas de mão esquerda que navegavam pelo braço do instrumento e que, associadas às cordas soltas, criavam sonoridades singulares. Nessa curta peça, chamam a atenção os arpejos virtuosísticos que a conectam com os ?Estudos? de Villa-Lobos e com peças menos conhecidas do próprio Pernambuco, como ?Pensando em Augustinha? e ?Valsa em lá?.