Cotidiano

Projeto investiga o que lixo diz sobre seu dono

RIO – Uma verdade sobre franceses: eles não têm problema em repreender desconhecidos. Em Paris, quem não recolhe o cocô do seu cachorro durante um passeio corre o risco de levar uma dura no idioma (e à maneira) do general De Gaulle. O carioca Rafael Duarte descobriu este traço regional quando morou na capital francesa, entre 2013 e 2014. Logo que foi botar seu primeiro lixo para fora, um vizinho lhe deu o recado: ?Monsieur, não sei como é no seu país, mas aqui nós separamos o lixo reciclável e o orgânico?.

? Achei aquilo fenomenal, sinal de evolução ? diz ele, sem ironia. ? Na Zona Sul do Rio, onde cresci, a gente já deveria estar nesse nível.

A partir daquela crítica pública, Rafael passou a analisar melhor seu consumo. E se deu conta de que o cesto de lixo pode ser um buraco negro: o que entra lá desaparece, deixa de existir, como se nunca tivesse passado por nossas mãos.

Esse raciocínio continuou fervilhando na cabeça do fotógrafo, que estava em Paris para estudar Cinema (sempre em busca de narrativas visuais sobre o equilíbrio do planeta, Rafael criou várias webséries, a equipe de expedições Miramundos e dirigiu os documentários ?Whiteout? (2015) e ?Trilha Transcarioca? (2017), programas de sua produtora Bambalaio). Naquele momento, sua curiosidade específica era saber se um olhar prolongado para o consumo doméstico poderia dar em alguma arte.

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Até que concebeu o projeto que chamou de iTrash. Ia pedir para conhecidos guardarem seu lixo seco (para minimizar o transtorno) durante 14 dias. No final do período, tiraria um retrato do voluntário com o que foi acumulado.

A empreitada já alcançou 12 pessoas, seis no Rio e seis em Paris. A ideia agora é encontrar parceiros para ampliar a iniciativa, envolvendo mais gente, mais cidades, e fazer não apenas fotos, mas um documentário. Ao longo do tempo, o que começou com uma dúvida de caráter ambiental (o que uma pessoa consome em duas semanas?) levou a outra, psicológica: o que seu lixo diz sobre você? Ou ainda: ver ele exposto leva a alguma transformação? Resposta: talvez.

Observando duas semanas de cervejas e vinhos à sua frente, uma jornalista se deu conta de que precisava frear sua vida acelerada. Um músico, com vergonha que o filho visse maços de cigarro, tentou parar de fumar. Outra artista não se reconhece mais nas embalagens de fast food que acumulou. E até este que vos escreve, que encarou a experiência por uma semana, já está repensando escolhas.

Diante dos resultados obtidos até agora no projeto iTrash, Rafael teve o que chama de ?insight artístico?.

? Nosso lixo é um objeto íntimo. Um saco com o que consumimos revela muito sobre um indivíduo. De certa forma, abrir uma lixeira é invadir a intimidade de alguém ? conta Rafael, explicando o estilo adotado no ensaio fotográfico, publicado pela primeira vez nesta edição da Revista O GLOBO. ? Não quis fazer estética publicitária, com destaque para o objeto. Busquei cenários que tivessem a ver com os personagens, queria que eles tivessem o foco principal.

Foco neles, então.

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A moça acima, por exemplo, é Edwige Poret, parisiense de 32 anos. Aos 29, quando fez a foto ao lado, ela conta que vivia como uma ?nômade?, constantemente mudando de endereço.

Didi, como os amigos chamam Edwige, conta que estava passando por uma pós-adolescência tardia:

? Eu não tinha o meu lugar, o meu espaço. A cada dois meses eu estava em um apartamento diferente. Não tinha muita certeza do que queria fazer, então ia experimentando, acertando e errando. Se minha vida fosse um seriado de TV, aquela teria sido a temporada do ?foda-se?.

Edwige não tem como negar: a foto com 14 dias de lixo reflete bem o seu cotidiano na época. Ela conta que não parava muito em casa, não tinha uma rotina. O que vemos no retrato são as cervejas que ela bebia antes de sair, as águas que tomava quando chegava, os lanches que fazia a qualquer hora. E uma certa atitude rock?n?roll:

? Foi algo que decidimos fazer na hora e que combina com aquela fase específica. A verdade é que naquele período eu estava querendo provar algo para mim mesma ? conta Didi. ? Hoje, trabalho com o que gosto, fazendo filmes. Mudei bastante. E meu lixo também. Estou bebendo menos, me alimentando melhor. Aquela experiência foi um passo inicial, claro. Mas um dia você vira adulto. Acontece.

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O percussionista Dhum Neves, de 38 anos, também vive tempos de mudança. Morador do Morro do Vidigal, ele agora está saindo da casa em que dividiu boa parte da vida com a mãe e duas irmãs para morar sozinho. Uma coisa vai ter de caber no caminhão de frete: o piano branco que aparece na foto aí ao lado. O instrumento, que estava encostado numa garagem, prestes a ser descartado, foi adquirido em 2010 por cerca de R$ 1 mil. Hoje reformado e valendo mais que o dobro, é seu xodó (?Aos poucos, estou virando pianista?).

Quando Rafael Duarte, que também é músico, veio falar com o amigo Dhum após um show sobre o projeto iTrash, já chegou propondo que o piano branco fosse o cenário do retrato. Só não imaginava que a foto fosse ter tanto néctar de fruta ? o suco diluído em água e com adição de açúcar, aromatizantes e corantes.

? Só com essa experiência me dei conta de que não sou de beber muita água. Difícil demais. Quer dizer, não bebo em casa: quando estou no palco, me movimento muito, estou sempre tomando água. Mas cerveja também… OK, tenho que prestar mais atenção no que eu bebo (risos) ? conta o percussionista, que nasceu Luiz Carlos Neves dos Reis, virou Dum ainda criança e Dhum quando uma professora de inglês sugeriu que o H deixava o apelido ?mais artístico?.

De fato, duas semanas amontoando lixo serviram para que Dhum se desse conta de que sua dieta líquida não estava balanceada. Mas também para que ele refletisse sobre o próprio ato de separar resíduos orgânicos e recicláveis. Se ainda não conseguiu dar um corte no suco industrializado, ao menos começou a selecionar seu lixo.

? Já tinha alguns amigos que separavam lixo. E depois da experiência, por iniciativa minha, a gente começou a separar em casa também. É um hábito que ficou enraizado e que eu vou levar para a minha casa nova também ? afirma Dhum, que vai continuar no Vidigal, onde ele conta que não há coleta seletiva. ? Não recolhem o lixo seco de porta em porta, mas eu faço questão de levar até o posto de triagem. Reciclagem é evolução.

A consciência ambiental parece ser algo geracional, seja no sentido de dar mais atenção ao entorno ou simplesmente consumir menos.

No Brasil, dizem os especialistas, o movimento de massa ainda é na direção de consumir mais. Para Martha Terenzo, pesquisadora de consumo e inovação e professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), apesar da crise, a mentalidade da maioria é acumular bens ? muitas vezes, bens a que nunca tiveram acesso.

? Em escala menor, mas crescente, alguns setores da classe média estão procurando consumir menos, buscando produtos sustentáveis, marcas mais autênticas ? completa Martha.

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A atriz Camila Rodrigues, que viveu a rainha Nefertari no sucesso bíblico ?Os dez mandamentos? e agora está gravando ?Belaventura? (ambas novelas da TV Record), é adepta da alimentação consciente. Tudo bem que quando ela estava participando do iTrash sua diarista jogou metade do lixo fora por engano (daí a pequena quantidade na foto acima). Ainda assim, mesmo pela pequena amostra é possível concluir que ela estava em uma fase ?super fit?, reforçada após a experiência.

? Logo depois da foto, fiquei atenta para tudo que eu consumia. Depois a gente perde um pouco o controle, natural. Mas parar para olhar a quantidade de lixo diário, algo que eu nunca tinha feito, foi ótimo.

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Alexandre Cavalcanti, que aparece na capa desta edição, já estava bem atento aos seus próprios resíduos ? e aos dos outros. Artista plástico morador do Leblon, ele está sempre de olho em objetos que podem compôr suas colagens. Uma tampinha de garrafa ou uma embalagem que ele encontra na rua têm grandes chances de aparecer em um de seus quadros (o retratado na foto, inclusive, era seu, e já foi vendido). Além disso, Alexandre conta que sempre privilegiou alimentos não industrializados ? a não ser o leite, cujas caixinhas tetrapack se destacam no retrato feito pelo amigo Rafael.

? É leite pra caramba, comecei a perceber isso. E passei a me policiar mesmo, não só com leite, mas com outras coisas. É difícil não ter lixo, mas é um desafio que vale a pena encarar.

Alexandre poderia se encaixar na definição de ?lowsumer?, termo que une as palavras em inglês ?low? (baixo, pouco) e ?consumer? (consumidor). Para além de tendências marqueteiras, que transformam a própria atitude de consumir menos em fonte de lucro, o comportamento tem ganhado adeptos.

65634627_RG - iTrash - Sarah Rodhe estudante e Amélie Rousseaux cantora Château Rouge - Paris.jpg

A francesa Amélie Rousseaux chega a se surpreender quando vê a foto acima, feita em 2014 no apartamento de Paris que ela dividia com a então namorada, Sarah Rohde.

? Como a gente comia porcaria! ? ela conta por telefone direto de Los Angeles, onde está vivendo desde 2016.

Formada em música, Amélie, de 29 anos, foi morar em Echo Park, bairro de artistas plásticos e jovens profissionais da indústria criativa. Segundo ela, a vizinhança ?meio hippie, meio hispster? contribui para que ela pratique o consumo consciente e leve um estilo de vida mais saudável do que praticava na França ? está até arriscando um surfe no Pacífico de vez em quando.

? Em Paris, no nosso prédio, havia uma certa pressão dos moradores para separar o lixo. Hoje, vivo em uma casa, sozinha. Se eu quisesse, nem precisava me preocupar tanto com isso, mas é um hábito que se mantém porque acredito nele.

65634631_RG - iTrash - João Gevaerd músico e João Pedro Jacarepaguá Rio de Janeiro.jpg

Também músico, o carioca João Gevaerd, 36 anos, é outro que reviu seus hábitos desde que posou com seu lixo, há cerca de três anos. A verdade é que ele participou do projeto em uma fase atípica: recém-separado da mãe do seu filho, João Pedro, ele estava vivendo na casa do pai, em Jacarepaguá, onde fica a piscina que aparece na abertura desta reportagem. Adaptando-se à situação, ele brinca que estava vivendo uma vida ?bem de solteirão?. Resultado: a prancha de surfe que aparece na foto está apinhada de embalagens de congelados, garrafas de refrigerante (?Fiquei impressionado com a quantidade de Coca-Cola que eu estava bebendo?) e iogurte ? o pequeno João Pedro andava com mania de Danoninho, já domada.

? Foi um choque ? resume João.

Mas houve um tipo de lixo que não coube na foto: cigarros.

? Foi a única coisa que ?esqueci? de guardar. Não quis me expor, não quis que meu filho visse ? conta. ? De lá pra cá, meus hábitos voltaram ao normal. Estou cozinhando mais em casa, não tomo mais tanto refrigerante. Só não consegui parar de fumar mesmo. Mas, se fosse feita a foto do meu lixo hoje, seria completamente diferente. Porque minha vida está diferente.