RIO- ?A descrição de uma obra de arte, assim como o relato de um sonho, interrompe e arruína a narração?, escreve Álvaro Enrigue a certa altura de ?Morte súbita? (Companhia das Letras). A frase pode ser lida como uma provocação a quem se arriscar a resumir o engenhoso romance que o autor mexicano apresentará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa em 29 de junho.
Uma descrição possível, mas insuficiente, começaria pela cena de abertura de ?Morte súbita?. Em 1599, num dia ensolarado em Roma, o pintor italiano Caravaggio e o poeta espanhol Francisco de Quevedo se enfrentam em uma partida de pallacorda ? ancestral do tênis. Um dos eixos do romance é a insólita cadeia de eventos que junta na quadra o inventor da pintura moderna e o escritor que encarnou o conservadorismo do Império Espanhol. Não menos insólita é a bola do jogo, feita com os cabelos de Ana Bolena, a rainha da Inglaterra decapitada em 1536.
A partir dessa premissa fantasiosa, ?Morte súbita? se expande no tempo e no espaço, convocando um elenco de figuras históricas decisivas das origens da modernidade, na transição do século XVI para o XVII. Como em um jogo de tênis, o romance se alterna entre Caravaggio e Quevedo. A história do pintor abre caminho para reis e rainhas de Itália, Inglaterra e França, papas e burocratas do Vaticano, artistas e mecenas. A narrativa sobre o poeta conduz o leitor às intrigas da corte espanhola e à sangrenta conquista da civilização asteca de Moctezuma pelo navegador Hernán Cortés. Tudo isso em apenas 250 páginas, alinhavadas por um narrador que, enquanto recebe e-mails alarmados da editora, vai se enredando cada vez mais nas pesquisas para o livro.
? Este não é um romance histórico. É um romance com Caravaggio, com Cortés, com Moctezuma, mas não sobre eles. É uma meditação, em chave de ficção, sobre o mundo em que nós vivemos ? diz Enrigue, nascido no México em 1969 e radicado nos EUA, onde é professor de literatura na Universidade de Princeton.
Enrigue situou o romance na virada do século XVI para o XVII porque aquele foi ?o momento em que se inventou grande parte do que vai mal em nosso mundo?, diz. Cita a formação do sistema bancário, com o fim da condenação religiosa ao lucro, e os primeiros passos da globalização, com os entrepostos comerciais europeus na América.
? Os habitantes do século XVI enfrentaram desafios parecidos com os nossos. Para eles, com as navegações, a Terra se tornou redonda como uma laranja. Assim como nós, com os aviões e a internet, eles achavam que tinham o mundo na palma da mão ? diz Enrigue, autor de mais sete livros de ficção, todos inéditos no Brasil, e casado com a escritora mexicana Valeria Luiselli, que também estará na Flip.
?Morte súbita? explora a origem violenta da globalização ao narrar a queda de Tenochtitlán, antiga capital do Império Asteca e atual Cidade do México, pelas mãos de Cortés, o espanhol bruto que tinha como lema a frase ?minha bola direita é o Santo Padre, e a esquerda é o Sacro Imperador Carlos I?. Mas também mostra o fascínio despertado na Europa pelas culturas americanas, por meio de objetos que deslumbram Caravaggio, como um conjunto de mitras indígenas feitas de penas coloridas.
? A Europa moderna não pode ser compreendida sem levar em conta a América, mas essa é uma herança que ainda precisamos reivindicar. Porque o capital que financiou a modernidade europeia veio das colônias, claro. Mas também pelo aporte das culturas americanas à Europa ? diz Enrigue. ? Para autores latino-americanos, parece que ainda é mais importante ser publicado na Espanha do que em seu próprio país. É como se o centro continuasse a ser a metrópole.
Essas e outras reflexões sobre o presente surgem no romance com um tom irônico e inventivo, que recusa as convenções do realismo. A meio caminho entre a ficção e o ensaio, ?Morte súbita? parece ser a resposta de Enrigue a outra provocação que aparece no livro: a de que uma obra de arte só mereceria ser lembrada ?se alterasse a linha que a História vai desenhando?:
? Noventa por cento do que se conta no livro é real, inclusive o mais inverossímil. Meu desafio foi tornar a História um pouco mais razoável.