Pode soar como clichê de filme romântico, mas foi realmente um caso de amor à
primeira vista. ?Encontrei a minha paisagem, a minha casa?, registrou o diretor
Ingmar Bergman em sua autobiografia, ?Lanterna mágica?, ao descrever suas
impressões sobre Fårö, onde esteve pela primeira vez em 1960, meio a
contragosto, procurando locações para o filme ?Através de um espelho?. Conhecida
por suas praias rochosas, invernos rigorosos e vegetação rasteira, a ilha irmã
de Gotland, a cerca de 90 quilômetros da costa da Suécia, não é exatamente um
paraíso de cartão-postal desejado por qualquer agência de viagem. Mas suas
características incomuns causaram um impacto avassalador na alma do recluso
cineasta sueco, que passou lá as últimas quatro décadas de sua vida.
Seis anos depois daquele primeiro contato, Bergman retornaria à ilha para
rodar ?Persona?, um de seus filmes mais célebres. E dessa vez, para ficar. Ali
se apaixonou por uma das estrelas do drama psicológico, a atriz Liv Ullmann, e
construiu Hammars, a primeira de suas quatro propriedades na ilha, à beira do
Mar Báltico, bem próximo da praia onde erguera o cottage que servira de cenário
para o longa. Era o início de uma longa e produtiva relação com Fårö, onde
filmou também ?Vergonha? (1968), ?A paixão de Ana? (1969), ?Cenas de um
casamento? (1973), e dois documentários, ?Fårö dokument? (1969), e ?Fårö
dokument 1979?. Nesses dois últimos, o diretor explora o descaso do governo
sueco com a ilha. Em retribuição, os ilhéus protegeram a privacidade do morador
ilustre, despistando os curiosos que ali apareciam à sua procura.
Até a chegada de Bergman, Fårö era
uma ilha de pescadores e pequenos fazendeiros esquecida do mundo, cujas maiores
atrações eram as monumentais formações rochosas ao Norte, as raukas, herança do
degelo glacial. Por ser considerada uma região estratégica para as forças
armadas, que ali mantinham uma base militar, só os suecos podiam pegar o ferry
boat que liga Fårösund, no extremo norte de Gotland, a Fårö ? foi por esta razão
que o cineasta russo Andrei Tarkovsky foi impedido de rodar lá ?O sacrifício?
(1986), como originalmente planejara. Com a saída dos militares de cena, no
início dos anos 1990, a região passou a receber também turistas estrangeiros,
que ainda chegam em busca das temperaturas amenas no verão e de histórias sobre
vikings e navios piratas naufragados.
Com a abertura, veio a especulação
imobiliária: à época da morte de Bergman, em 2007, Fårö já era conhecido destino
de veraneio de endinheirados do continente, atraídos por seu isolamento
geográfico ? não há bancos, hospitais, supermercados, escolas, e o transporte
público só funciona na alta estação, e em horários restritos. As poucas e bem
cuidadas estradas da ilha começam a se encher de forasteiros, que chegam ali em
carros, bicicletas ou ônibus de turismo, somente entre o final de junho e
setembro, quando a vegetação rasteira se cobre de margaridas e tremoceiros
azuis, chamados pelos locais de blaed, ou ?fogo azul?.
? Políticos e artistas têm
comprado propriedades na ilha, adaptaram casas antigas ou construíram novas.
Eles fazem um contraste muito grande com as famílias que moram aqui há gerações,
e que convivem diariamente com a falta de infraestrutura mais robusta ? conta
Monica Riedel, comerciante de Estocolmo.
Todo verão, ela monta um mercado
de produtos indianos em um posto à beira da principal estrada de Fårö, a poucos
metros da igreja onde Bergman e sua última mulher, Ingrid, foram enterrados, e
do Bergman Center, instituição que preserva e promove a obra do diretor.
Segundo a comerciante, a população
local não se renova.
? Porque os mais jovens preferem
ir buscar alternativas em outras cidades ? explica.
A despeito das centenas de turistas
que visitam Fårö na alta temporada, os cerca de 500 habitantes da ilha lutam
bravamente pela sobrevivência. Há pasto para criação de gado e ovelhas, mas o
solo para cultivo é escasso. A pesca artesanal, atividade que por décadas
sustentou os nativos, foi esvaziada pela grande indústria ? as cabanas de
pescadores remanescentes, de tons marrons avermelhados, viraram ponto turístico.
Os reservados ilhéus, no entanto, têm orgulho de seu estilo de vida, e preferem
não se intimidar com a invasão sazonal de forasteiros: ainda é um hábito dos
moradores vender o excedente do que produzem ou colhem, deixando os produtos
expostos na porta de suas casa. O comprador pega o que precisa, confere a lista
de preços e deixa o dinheiro no caixa improvisado.
? Os nativos aqui de Fårö são
bastante protetores em relação a suas raízes e ao seu passado. As famílias vivem
aqui há séculos, são gerações e gerações que se substituem nas fazendas e nas
casas herdadas dos mais velhos. Eles têm um nome especial para quem é daqui:
fåröborna. A tradução literal disso é ?moradores de Fårö?, mas me explicaram que
não basta morar aqui. Então, quando minha filha nasceu na ilha, fiquei toda
contente e disse que ela era fåröbo. Eles me olharam torto e devolveram ?quem
sabe daqui umas 13 gerações?? ? lembra Helen Beltrame-Linné, a brasileira que
está à frente do Bergman Center desde 2014. ? O Bergman é um caso único, em que
os locais deram a ele a honraria de se tornar fåröbo. Isso porque ele se
envolveu muito com as questões daqui, investiu muito na ilha, era extremamente
respeitoso com os locais. Nas filmagens aqui, ele só usava mão de obra local,
suas casas foram todas construídas por locais. Ele teve desde o início essa
sensibilidade para a importância de ser aceito, e fez isso como ninguém.