RIO ? Em seu mais recente relatório anual, a Human Rights Watch emitiu um contundente alerta para o enfraquecimento das políticas de preservação dos direitos humanos diante da onda populista que avança, sobretudo, sobre Europa e Estados Unidos. Em particular, a organização internacional citou a retórica do presidente eleito americano, Donald Trump, como uma perigosa ilustração da ideologia de intolerância que ganhou força em discursos nacionalistas ao longo do ano passado. Os receios da ONG, que atua em países de todos os cantos do mundo, sobre o futuro governo republicano em Washington contrastam com seus elogios ao atual chefe da Casa Branca, Barack Obama ? destacado pelo relatório como exemplo raro de líder que vem defendendo vigorosamente os direitos humanos na comunidade internacional.
Segundo a Human Rights Watch, a mensagem de Trump em sua campanha eleitoral conquistou os eleitores descontentes com a estagnação econômica do país, mas viola princípios básicos de dignidade e igualdade necessários a uma sociedade multicultural. A ONG enumerou enfaticamente as suas atitudes mais polêmicas na corrida presidencial, que provocaram repetidas acusações de racismo, xenofobia e machismo contra o republicano.
“Ele estereotipou migrantes, inferiorizou refugiados, atacou um juiz por sua ascendência mexicana, zombou de um jornalista com deficiência, rejeitou múltiplas alegações de abuso sexual e prometeu reverter a capacidade das mulheres de controlarem sua própria fertilidade”, diz o relatório.
A ONG também não economizou em duras críticas às declarações de Trump sobre a comunidade islâmica. Em seus comícios, o magnata prometeu banir a entrada de muçulmanos nos EUA caso fosse eleito, o que incluiria a recepção a refugiados, em uma das suas declarações mais polêmicas da campanha. Sua justificativa era que a medida ajudaria a frear a ameaça terrorista no país.
“O plano do candidato Trump de combater o terrorismo de muçulmanos era igualmente fútil ? até mesmo contraproducente ? ao demonizar comunidades muçulmanas inteiras, cuja cooperação é importante para identificar planos de ataques futuros. Ele retratou os refugiados como um risco para a segurança nacional, embora eles sejam submetidos a um exame muito mais rigoroso que o grupo muito maior de pessoas que entram nos EUA por razões de negócios, educação ou turismo”, criticou a Human Rights Watch.
DIREITOS HUMANOS EM RISCO NO OCIDENTE
No mesmo sentido, a ONG expressou profunda preocupação com a onda populista que avança no Ocidente e, em particular, em países europeus. O fenômeno é identificado como reação, sobretudo, à insatisfação pública com o status quo, a crescente desigualdade econômica, os atos de terrorismo e a crise migratória. Neste contexto, políticos com fortes retóricas de exclusão conquistam espaço eleitoral e atraem quem sente que foi esquecido pelo seu próprio governo ? marginalizando os princípios básicos dos direitos humanos universais.
“Alguns sentem desconforto com sociedades que se tornaram mais diversas étnica, religiosa e racialmente. Há uma crescente sensação de que os governos e a elite ignoram as preocupações da população. Nesse caldeirão de descontentamento, certos políticos estão florescendo e até ganhando apoio ao tratarem os direitos como algo que protege apenas os suspeitos de terrorismo ou refugiados em detrimento da segurança nacional, do bem-estar econômico e das preferências culturais da suposta maioria. Eles usam os refugiados, as comunidades de imigrantes e as minorias como bode expiatório. A verdade é uma vítima frequente. O nacionalismo, a islamofobia, o racismo e a xenofobia estão em ascensão”.
Um dos exemplos destacados negativamente foi o governo húngaro, liderado pelo primeiro-ministro Viktor Orbán. O premier propôs o fechamento completo das fronteiras da Europa, para garantir que os refugiados que deixaram seus países em fuga de guerras, perseguições e pobreza extrema fiquem de fora do continente. A proposta, que representa uma plataforma de grave violação aos direitos humanos, foi apoiada por outros governos conservadores vizinhos. Enquanto isso, na Holanda, o governo apoia as restrições ao uso do véu islâmico pelas mulheres, por exemplo.
Na contramão, a ONG citou três líderes como raras exceções de figuras políticas que atuaram como defensores dos direitos humanos em 2016 no Ocidente ? ao contrário dos chefes de governo que, se não se utilizaram de discursos nacionalistas exacerbados, também não assumiram discursos ativos para combatê-los. Os destacados foram a chanceler federal alemã, Angela Merkel, que abriu as fronteiras aos refugiados, embora sob forte pressão negativa dos seus críticos; o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, que também advogou em alto e bom som pela recepção aos refugiados em seu país; e, por fim, ao presidente americano, Barack Obama, que também reforçou plataformas políticas de união e integração multicultural em seus dois mandatos na Casa Branca.
AUTORITARISMO E REPRESSÃO
A ascensão de governos autoritários e o reforço de ondas repressoras também geram um alerta para a ONG ? desta vez, sobretudo fora do Ocidente. Os presidentes Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, vêm destacados por suas duras campanhas para silenciar vozes críticas da oposição. Na Turquia, o presidente Recep Tayyip Erdogan se aproveitou de uma tentativa de golpe para esmagar seus críticos, segundo a organização, em referência ao expurgo que atingiu dezenas de milhares de pessoas desde o golpe fracassado de 15 de julho.
Mergulhada em uma grave crise sócio-econômica, a Venezuela também é alvo de perseguições a opositores, que vêm acompanhadas de prisões extrajudiciais e tortura, segundo a ONG. Em 2016, o agravamento da guerra política entre o presidente Nicolás Maduro e a coalizão opositora Mesa de Unidade Democrática, elevou as tensões do país. Enquanto isso, a população sofre com a escassez de produtos básicos, incluindo alimentos e remédios, e com a inflação mais alta do mundo.
“O presidente Maduro, que controla o judiciário, colocou os serviços de inteligência em ação para deter e processar arbitrariamente políticos da oposição e críticos, minou a capacidade de legislar da maioria opositora na Assembleia Nacional e usou seus aliados no tribunal eleitoral para obstruir um referendo” ressalta o relatório.”Há ainda outras questões preocupantes como as péssimas condições das prisões, a impunidade por violações de direitos humanos e frequente perseguição por parte de autoridades do governo aos defensores de direitos humanos e aos veículos de comunicação independentes.”
Nas Filipinas, outro motivo de forte preocupação é o sangrento combate às drogas do presidente Rodrigo Duterte, cujas declarações altamente agressivas já surpreenderam o mundo todo já no início do seu mandato. Foram milhares de mortos e presos em poucos meses do seu governo, sob a premissa de que os narcotraficantes e usuários de drogas devem ser brutalmente exterminados com execuções sumárias e extrajudiciais.
E, claro, não poderia ficar de fora do relatório deste ano a grave situação humanitária da Síria, país que entra em seu sexto ano de uma arrasadora guerra civil e já assistiu a centenas de milhares de mortes desde 2011. As críticas da ONG se voltaram diretamente ao presidente sírio, enquanto o regime de Damasco conduziu frequentes ataques aéreos contra civis ao longo de 2016. A devastação no país desencadeou a maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. E são estes milhões de sírios que encontram as portas fechadas pelos governos europeus e hoje são as maiores vítimas das violações de direitos humanos na rota da imigração.
“Enquanto isso, confiante de que há pouco a temer nos ocasionais protestos do Ocidente, o presidente sírio Bashar al-Assad, apoiado pela Rússia, Irã e o Hezbollah do Líbano, rasgou as leis internacionais de guerra ao atacar implacavelmente civis em partes do país dominadas pela oposição, incluindo Aleppo Oriental”, destacou a ONG.
A Human Rights Watch faz um apelo para que, no próximo ano, os governos mudem sua posição na comunidade internacional. É necessário, argumenta, que os poíticos tradicionais ativamente se contraponham às ameaças populistas contra os direitos humanos no mundo.
“Para combater essas tendências, é urgentemente necessária uma ampla reafirmação dos direitos humanos. A ascensão dos populistas certamente deve levar a um exame de consciência entre os políticos tradicionais, mas não a um abandono dos princípios básicos por governantes ou pela opinião pública. Governos comprometidos com o respeito aos direitos humanos servem melhor seu povo, sendo mais propensos a evitar a corrupção, o autoengrandecimento e a arbitrariedade que com tanta frequência acompanham governos autocráticos. Os governos fundados em direitos humanos estão em melhor posição para ouvir seus cidadãos e reconhecer e resolver seus problemas. E os governos que respeitam os direitos humanos são mais facilmente renovados quando as pessoas ficam insatisfeitas com sua administração”, disse a organização.