RIO – A penúria nas contas do estado mostrou na terça-feira uma de suas faces mais dramáticas.
O governo não repassou os R$ 13 milhões do programa Renda Melhor para 211 mil
famílias que vivem abaixo da linha da pobreza. São recursos destinados àquelas
que já recebem o Bolsa Família, mas que, ainda assim, vivem com menos de R$ 100
per capita por mês. Segundo a Secretaria estadual de Fazenda, o depósito não foi
feito por falta de dinheiro em caixa. Muito irritado com o atraso no pagamento,
o secretário de Assistência Social e Direitos Humanos, Paulo Melo, atacou
duramente o governo e ameaça deixar o cargo.
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o
Estado do Rio tem 565.135 pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. A
Secretaria de Assistência Social estima que a grande maioria seja contemplada
pelo Bolsa Família, do governo federal, que atende 811 mil famílias no Rio, a um
custo de R$ 123,5 milhões por mês. O Renda Melhor funciona como um complemento.
Crise – 17/05
O benefício básico do programa federal é de R$ 77. O
estado pode acrescentar entre R$ 30 e R$ 300, tomando como base a penúria de
cada família. Aqueles que têm filhos cursando o ensino médio na rede estadual
podem ser contemplados com o Renda Melhor Jovem, que premia os estudantes a cada
ano concluído no ensino médio, para evitar evasão. Do primeiro para o segundo
ano, são concedidos R$ 700; do segundo para o terceiro, R$ 900; e na conclusão,
mil reais. O aluno pode sacar no máximo 30% nos dois primeiros anos e, no
terceiro, toda a quantia.
Criado em 2011 pelo ex-governador Sérgio Cabral, o Renda Melhor foi
fortemente utilizado na campanha eleitoral do governador licenciado Luiz
Fernando Pezão, que atualmente se trata de um câncer no sistema linfático. Os
problemas enfrentados pelo programa preocupam peemedebistas em ano de eleição.
?DESSE JEITO, É MELHOR FECHAR A SECRETARIA?
Para Paulo Melo, deixar de pagar o Renda Melhor põe em risco o legado social
e os avanços nas políticas de transferência de renda dos governos do PMDB que
comandam o estado desde 2007. O secretário não poupou críticas à atual gestão e,
em especial, à Secretaria de Fazenda, mas não citou o nome do titular da pasta,
Julio Bueno, assim como os de Pezão e Francisco Dornelles, governador em
exercício.
Nas palavras do secretário, o governo está ?perdido? e acometido por uma
espécie de ?insensibilidade generalizada?.
? É muita falta de respeito e insensibilidade do governo e do secretário de
Fazenda. Desse jeito, é melhor fechar a secretaria. Se o governo não faz o que
tem ser feito, não precisa de secretaria, nem de secretário ? criticou Melo.
Para o secretário, o problema não foi só falta de dinheiro, mas de
prioridade. Ele disse que não foi sequer informado de que o repasse não seria
realizado.
? Estou decepcionado como secretário e revoltado como cidadão. O governo não
se comunica, não tem sinceridade. O governo não deu qualquer satisfação à
população, nem sequer divulgou nota ou reuniu a equipe para avisar que não
poderia pagar o benefício. Essas famílias são extremamente pobres e contam com
esse dinheiro. Muitas vezes, isso é a garantia de comida à mesa ? disse o
secretário.
Paulo Melo demonstrou preocupação com a possibilidade de
tumulto nas agências da Caixa Econômica Federal (CEF) nos municípios do estado.
? Não sabemos qual será a reação das pessoas. Na última eleição, houve um
boato de que o governo federal não pagaria o Bolsa Família e aconteceu
quebra-quebra ? alertou o secretário, que está inclinado a deixar o cargo. Ele
já havia ameaçado deixar a pasta no início deste mês, mas Dornelles o convenceu
a ficar.
O desgaste se deve aos cortes nos repasses para o órgão
comandado por Paulo Melo, que deixou a secretaria de Governo há dois meses, com
a promessa de mais visibilidade e recursos. No entanto, a área de Assistência
Social e Direitos Humanos vem sendo bastante impactada pela crise.
No mês passado, o repasse do estado para custear os benefícios do programa
Aluguel Social foi feito no final do expediente bancário. Nos bastidores, pairam
incertezas sobre os recursos do mês que vem para as 12 mil famílias contempladas
pelo programa.
A pasta de Melo também cuida do projeto Restaurante Popular, para o qual não
tem recebido repasses suficientes, o que levou as unidades a dobrarem o valor
das refeições, de R$ 1 para R$ 2, em maio do ano passado. No entanto, o
restaurante de Itaboraí chegou a fechar. Já os da Central e de Niterói
substituíram itens como carne e frango por linguiça.
Estudioso das finanças fluminenses, o economista Mauro Osorio, da UFRJ,
demonstrou preocupação com o atraso no pagamento do Renda Melhor:
? Isso só mostra que a crise está se aprofundando ainda mais. É um programa
que deveria ser prioridade, já que atende aqueles que mais precisam do Estado ?
disse o economista, acrescentando que o Executivo deveria aproveitar o momento
de crise para reformas e medidas de austeridade, como a redução de repasses do
governo aos poderes Legislativo e Judiciário.
Paulo Corval, especialista em tributação e finanças públicas da UFF, afirmou
que, mesmo numa crise, não há justificativa para não se pagar o Renda Melhor.
? Não pagar esse benefício é uma medida com enormes custos sociais, já que
essas pessoas são extremamente pobres. O valor de R$ 13 milhões é irrisório no
orçamento. O governo precisa fazer um escalonamento de prioridades. Eu ainda não
vi qualquer política de pessoal. Não vi o estado tomando medidas duras de corte
de cargos comissionados, políticas de favorecimento de demissão e de enxugamento
da estrutura administrativa.
?CADA SECRETÁRIO DEVE LUTAR PELA SUA PARTE?
Bueno, em nota, não comentou as declarações de Paulo Melo, limitando-se a
informar que não havia dinheiro para a liberação dos recursos. A Secretaria de
Fazenda não informou se há previsão para repassar o dinheiro.
Durante um seminário no BNDES, à tarde, Dornelles minimizou as críticas de
Melo:
? Cada secretário deve lutar pela sua parte e odiar o secretário Julio
Bueno.
As críticas de Melo, que é deputado licenciado do PMDB, são mais um sinal de
insatisfação dos caciques do partido com a administração de Pezão. Nas últimas
semanas, o presidente da Alerj, Jorge Picciani (PMDB), também fez duros ataques
ao governo.
Na assembleia, aliados comentam que os dirigentes do PMDB fluminense estão
preocupados com o impacto da crise nas eleições nos municípios do interior.
Deputado mais votado do partido no Rio no último pleito, Melo tentará emplacar
seu candidato Hamilton Nunes de Oliveira, o Pitico, no município de Saquarema,
na Região dos Lagos. Lá, a mulher do secretário, Franciane da Conceição Gago
Motta, é prefeita.
MAIS DE MEIO MILHÃO DE MISERÁVEIS
O drama enfrentado por 565.135 fluminenses que vivem abaixo da linha da pobreza
foi retratado na série de reportagens ?Os miseráveis?, que O GLOBO publicou em
maio do ano passado. O número, baseado em dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), representa 3,77% da população do Estado do Rio, que
tem a sexta maior renda per capita do país e o mais o alto percentual de
miseráveis de todo o Sul e o Sudeste. Durante um mês, equipes do GLOBO
percorreram os bolsões de extrema pobreza para contar as histórias de cidadãos
que tinham renda per capita inferior a R$ 140,70 por mês, quantia necessária
para comprar uma cesta de alimentos com a quantidade mínima de calorias, de
acordo com os critérios do Ipea.
A reportagem destacou a opinião de especialistas sobre
esses dados, como a da economista Sônia Rocha, pesquisadora do Instituto de
Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). Segundo ela, o Rio tem uma periferia da periferia, como a cidade de
Japeri. Sônia fez uma comparação com São Paulo, que tem subcentros importantes
economicamente na área metropolitana e no interior, diferentemente do Rio.
Outra explicação apontada na reportagem foi a estrutura do mercado de
trabalho fluminense. Os especialistas Valéria Pero, Adriana Fontes e Samuel
Franco, também do Iets, lembram que o Rio tem, entre os mais pobres, uma taxa de
desemprego maior do que a média nacional. A população mais desfavorecida acaba
buscando alternativas na informalidade, que, por sua vez, não leva à superação
da pobreza.
Para piorar, o desenvolvimento do Rio nos últimos anos,
impulsionado pelo petróleo, ocorreu mais fortemente fora da Região
Metropolitana, que concentra 74% da população.