Existem várias comparações inspiradoras entre a Mãos Limpas e a Lava-Jato, as duas operações da Justiça que atacaram o coração da corrupção que minou partidos e políticos na Itália e no Brasil. A investigação italiana da década de 1990 expediu quase três mil mandados de prisão, investigou mais de seis mil pessoas, indiciando quase 900 empresários e 438 parlamentares, dos quais quatro ex-primeiros-ministros. Na esteira da ação policial contra os corruptos, os quatro principais partidos do país na década começaram a morrer.
A investigação brasileira produz o mesmo efeito devastador sobre políticos e partidos, enquanto ainda se escava as profundezas da organização criminosa que assaltou a nossa maior empresa, levando, até agora, à prisão de 160 pessoas, entre os quais executivos das maiores empreiteiras, e a condenação de uma centena de réus a 1.140 anos de prisão.
São as semelhanças que animam os brasileiros decentes, que veem, pela primeira vez, a fina flor da plutocracia empresarial e política sob a investigação da polícia e o crivo da lei. Mas existe um efeito secundário que frustrou a Itália e assombra o Brasil: a berlusconização da política.
O megabilionário Silvio Berlusconi, um dos primeiros-ministros investigados pela Mãos Limpas, voltou tempos depois ao poder e, com a ajuda de comparsas ressentidos no Parlamento, comandou um articulado retrocesso legal que desfez muitas das conquistas históricas da Mãos Limpas.
O Brasil pode sofrer um processo semelhante. Indícios de uma virtual berlusconização verde-amarela são percebidos, agora por gestos e vozes, nas conversas furtivas e nos desabafos dos protagonistas da Lava-Jato. As gravações e delações do ex-senador Delcídio Amaral e do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado revelam, mais que intenções, ações concretas no sentido de inibir o Ministério Público e desqualificar a investigação de Curitiba, hoje depositária dos votos de milhões de brasileiros para que a Justiça, enfim, alcance a todos, até os ricos e poderosos.
A história demonstra que as instituições se movem e se motivam por momentos de comoção social. Assim é com o Legislativo. Leis que melhoraram o sistema jurídico nasceram a partir de comoções, como o caso de tortura e violência doméstica praticada pelo marido contra uma bioquímica de nome Maria da Penha Maia Fernandes. Seu caso virou um escândalo internacional e deu nome a uma lei de proteção às mulheres, em 2006, graças a um Congresso movido e comovido pela repercussão social da brutalidade.
A comoção com a corrupção levou o Congresso, antes hostil, a aprovar a Lei da Ficha Limpa, que ajudou a limpar a representação política. Agora, o tamanho do roubo na Petrobras, estimado em mais de R$ 40 bilhões, comove uma nação exaurida por tanta corrupção. E o perigo maior nasce, desta vez, dentro do próprio Parlamento, onde personagens ilustres da Lava-Jato tramam normas e leis que amarram as mãos limpas do Ministério Público e tentam desarmar ou desidratar a operação.
O mais recente caso explodiu na quinta-feira passada, dia 30. O presidente do Senado, talvez comovido pelo fato de ser réu e investigado em processos no Supremo Tribunal Federal, anunciou um pacote de medidas prioritárias para serem votadas apressadamente até o fim do semestre legislativo, em exíguos 15 dias. Uma delas, que sequer é projeto de lei, é a minuta de anteprojeto que cria o crime de abuso de autoridade. São 29 novos tipos penais, dentre eles a prisão de quem emitir opinião política, ordenar ou executar prisão ilegal e exceder-se no cumprimento de ordem judicial. Normas de interpretação vaga, mais afeitas a ditaduras do que às democracias.
O Brasil não pode permitir que o algoz se finja de vítima. Essa é a autêntica berlusconização, em marcha batida para fraudar o país e desmoralizar definitivamente a política. No pasarán!
Randolfe Rodrigues é senador (Rede-AP)