Cotidiano

Além da lama, Rio Doce enfrenta a seca, diz piloto de paramotor

Lu 1.jpgSÃO PAULO ? Durante 22 dias, o piloto de paramotor Lu Marini sobrevoou o Rio Doce para registrar a condição das águas e das comunidades ribeirinhas um ano após o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG). O trajeto foi de cerca de 850 quilômetros e mostra que a lama de rejeitos de mineração prevalece desde a formação do rio até a foz, no Espírito Santo. Marini falou ao GLOBO sobre a experiência:

Mariana ? 7/11

O que mais chamou atenção nesta expedição?

Por mais que eu tivesse visto reportagens sobre o que aconteceu, estar ali naquele lugar, andar no meio dos escombros e ver a história das pessoas no meio da lama… Boneca de criança, objetos, fotos, tudo deixado para trás. Foi a experiência mais emocionante que tive. Todos falam muito de Bento Rodrigues, mas a tragédia não atingiu apenas o distrito. A lama chegou a outras comunidades, menos visíveis, e mudou para sempre a vida de todas elas.

Fale sobre uma delas

Barra Longa, por exemplo, foi a única cidade que realmente foi atingida pela lama. As demais eram distritos, comunidades menores. Fui numa escola conversar com as crianças, que são os serzinhos mais sinceros…. Perguntei a uma menina de 10 anos o que era o rio para ela. E ela respondeu: “Vida, esperança, felicidade”. Para os adultos, o rio era um meio de sobrevivência. Muitos viviam da pesca, outros de turismo. Para as crianças, o rio era a única fonte de lazer. A maioria mora em lugares que não têm nada a não ser o rio. A água era a única diversão que elas tinham e hoje não têm mais.

Ninguém mais entra na água?

Quem entra na água fica com bolinhas no corpo, alergia. E falta informação. As pessoas não sabem se podem usar a água, se não podem. Se podem comer o peixe, se não podem. Cheguei numa cidadezinha às 7h30m da manhã. Quando desço, as pessoas sempre vem me olhar, curiosas. Uma delas foi Cristiana Rosa. Ela fez um café e fomos tomar e conversar na mesinha da praça. Ela contou que de um dia para o outro ficou sem água para beber, para tomar banho. Foi para a rodovia protestar e ouviu críticas…. Mas ela queria apenas água para beber. Vendiam água a R$ 4. Com a tragédia passaram a vender por R$ 10…

Há outros desvios deste tipo?

Ouvi a história do cartão da Samarco, distribuído a pessoas que dependiam do rio para viver, como os pescadores. Um cartão vale entre R$ 1.000 e R$ 1.500 por mês. Tem médicos recebendo, gente que nunca pegou uma vara de pescar. Ou seja, as pessoas aproveitam o desastre para tirar vantagem, enquanto tem pescador que não recebe…E tem pescador que, mesmo sendo proibido, continua pescando e recebendo o benefício do cartão. Quando a gente pergunta, dizem que precisam de dinheiro para viver.

O rio era parte da vida de muitas pessoas. Como elas estão vivendo?

Avistei uma tribo, a dos krenaks, e desci para falar com eles. O rio é uma tradição para os índios. Os pais sempre ensinaram os filhos a nadar e pescar. Agora não podem mais deixar os filhos sequer entrarem no rio. E a criançada não se conforma: “Por que ele foi no rio e eu não posso ir no rio?” Eles têm um canto em homenagem ao rio Doce, que vem dos antepassados. Eles nunca mais cantaram. Quando visitei a tribo pedi para que voltassem a cantar. Quem sabe cantando dão força para que o rio sobreviva

Você viu no rio essa sobrevida?

A verdade é que o rio já vinha morrendo há muito tempo. Há muito ele vinha sendo poluído com os dejetos de minério que invadiam a água. E nas cidades recebia e ainda recebe esgoto a céu aberto. No Espírito Santo o rio enfrenta agora o problema da seca. Em Colatina, Linhares, a lama passou a formar ilhas enormes no meio do rio. A seca é também fruto poluição, do desmatamento, da morte das nascentes. Tudo isso dificulta ainda mais que o rio ressuscite.

E o trabalho de recuperação do rio?

É preciso lutar contra o descaso, contra os pequenos interesses, contra a corrupção. Numa das cidades tinha uma central de tratamento de água desativada. Ela quebrou e, em vez de arrumar, a cidade pegou dinheiro para fazer outra. Agora tem duas estações, as duas não funcionam. Percorri cerca de mil quilômetros, não vi um esforço grande de revitalização. Vi um rio solitário, tentando sobreviver.

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