Cotidiano

Leia dois poemas da escritora Gilka Machado

“Sensual”

“Quando, longe de ti, solitária, medito
neste afeto pagão que envergonhada oculto,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
que o teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.
A febril confissão deste afeto infinito
há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
a minha castidade é como que um insulto.
Se acaso te achas longe, a colossal barreira
dos protestos que, outrora, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.
Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
e sinto da volúpia a escosa e fria lesma
minha carne poluir com repugnante baba…”

“Beijo”

“Beijo, beijo de amor ? ave em cuja asa crespa
o espírito se eleva a paragens etéreas,
ignívoma, nervosa e zumbidora vêspa,
que infiltra nas artérias
da volúpia o fervente e orgíaco veneno;
som que ao festivo som de um guizo se assemelha,
que a um só tempo gemido, é gargalhada e é treno;
semente, que a vermelha
ilor da luxúria vem plantar sobre o maninho
solo da alma; licor que se contém da boca
na ânfora coralina. espiritual carinho;
bala rubra que espoca
no lábio; arredondada e rútila e sonora
frase que vem narrar do amor todo o áureo poema,
e que entender só pode o ente que ama, que adora.
Beijo de amor ? suprema
delícia, original pomo da árvore da alma,
cujo galho, a subir, vai pender sobre a ameia
do lábio, pomo que ora excita e que ora acalma.
Dentro, em nós, mais se ateia,
ao contato febril do lábio amado e amante,
das ânsias a fogueira, e dos beijos o ruído
ser julgo o crepitar dessa fogueira estuante.
Beijo de amor ? olvido
para os males da. ausência; astro canoro e rubro
que no horizonte arcoal do lábio humano aponta;
flor que adorna do afeto o suntuoso delubro;
aurifulgente conta
que, ó Alma! vais enfiar no colar dos prazeres:
rumor que, em si, contém cintilas policores,
sonora confusão das bocas e dos seres;
misto de sons e odores, beijo, beijo de amor ? escandalosa loa,
que, na festa pagã do luxuriante gozo,
com louvor a Cupido a humana boca entoa,
elixir delicioso,
que ao paladar nos traz da saudade os ressábios;
remédio com que, ó Ânsia! esse teu mal ensalmas;
beijo, beijo de amor ? matrimônio dos lábios
? concúbito das almas.”