BRASÍLIA- Os ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) mandaram ontem soltar cinco médicos e funcionários de uma clínica clandestina, presos em Xerém, na Baixada Fluminense, em uma decisão que entende não ser crime a interrupção voluntária da gravidez até o terceiro mês da gestação. A decisão, aprovada pela maioria da Turma, se aplica apenas ao caso dos médicos do Rio, mas abre um precedente inédito no STF sobre o tema. Segundo especialistas, a medida é um marco sobre o tema no Brasil.
O ministro Luís Roberto Barroso entendeu que a criminalização do aborto até o terceiro mês da gestação não é crime porque viola os direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. Outros dois ministros seguiram seu voto: Rosa Weber e Edson Fachin. Os ministros Marco Aurélio e Luís Fux não entraram na discussão sobre a criminalização, mas também votaram pela liberdade dos médicos e funcionários por não concordarem com a prisão preventiva.
Em 2012, o STF já havia decidido, em julgamento histórico, se posicionar a favor da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos (sem cérebro). Na próxima semana, está marcada a votação do julgamento da ação que pede a liberação do aborto para gestantes infectadas pelo vírus zika.
O relator do caso era o ministro Marco Aurélio Mello, que votou pela liberdade apenas por entender que não cabia prisão preventiva nesse caso. O ministro Barroso pediu vista e devolveu o processo ontem com outras justificativas. Ele acabou sendo o voto vencedor e será relator para o acórdão, que resume o resultado do julgamento.
O caso analisado ocorreu numa clínica clandestina, fechada pela polícia em 2013, onde funcionários e médicos foram presos. Após serem soltos pelo juiz da Comarca de Duque de Caxias, a 4ª Câmara Criminal decretou suas prisões preventivas.
No acórdão da decisão, a maioria da Primeira Turma afirma que a criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: ?os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria?.
Barroso argumentou que o maior impacto da criminalização é sobre as mulheres mais pobres. Isso porque ?o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis?. Como consequência, disse o ministro, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e mortes.
Segundo o voto vencedor de Barroso, a tipificação do crime de aborto violaria, também, o princípio da proporcionalidade porque não produzir ?impacto relevante? sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; ser possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho; por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. O voto assinala que ?praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime?. E cita os Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.
Barroso diz também que a criminalização afeta a integridade física e psíquica da porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação ?ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher?. Violaria ainda, diz o ministro, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
Divisor de águas
Na opinião do advogado e presidente da Comissão de Direito da Família da OAB-RJ, Bernardo Garcia, a decisão é um divisor de águas e estabelece uma jurisprudência importante que pode ser seguida em outras decisões.
? A decisão mostra uma mudança de interpretação do próprio STF, eles estão analisando agora quando o aborto foi praticado, estão mitigando a criminalização ? explicou Garcia. ? A interpretação do ministro é que os princípios constitucionais se sobrepõem ao Código Penal.
A decisão do STF foi comemorada por integrantes do movimento feminista. A socióloga Ana Liési Thurler, membro do Conselho dos Direitos da Mulher do Distrito Federal, recebeu com surpresa a decisão da Corte e afirmou que se trata de um marco para os direitos da mulher:
? As mulheres têm lutado durante décadas pelo direito de escolha de prosseguir ou não com a gravidez. Essa decisão poupará a vida de muitas mulheres, é um grande ganho.