Opinião

Coluna Direito da Família: Crianças invisíveis

O que você faria se fosse invisível? A invisibilidade, entendida enquanto superpoder, e que aguça a imaginação de crianças a idosos, pode ser medida enquanto maldição. É o que foi tratado por Herbert George Wells, escritor britânico do século XIX, que criou o clássico “O homem invisível”, no qual se vislumbra a conexão entre a visibilidade e a identidade, enquanto atributo inerente à personalidade humana.

Nesse ponto, é crucial compreender que, a partir da teoria crítica sobre o reconhecimento, formulada pelo filósofo alemão Axel Honneth, a construção da identidade tem caráter dialógico, isto é, depende do caráter histórico do sujeito, mas também da dinâmica intersubjetiva. Aliás, esse é o principal aspecto dentro da teoria honnetiana, dando ênfase à formação da autenticidade humana pelas relações entre os sujeitos.

No âmbito familiar, torna-se mais latente o aspecto da intersubjetividade na formação da personalidade, especialmente de crianças e adolescentes, em desenvolvimento da psiquê. Nesse sentido, o filósofo garante três esferas fundamentais de reconhecimento que, se violadas, levam à privação de direitos e degradação: o amor, o direito e a solidariedade. Nestas, respectivamente, há o reconhecimento dos laços afetivos, de direitos pelo Estado e o dos grupos sociais e diferenças culturais.

A violência doméstica ou familiar, embora presente no cotidiano, incidiu em impunidade por muito tempo. Derivado da construção patriarcal dos costumes sociais, bem como do sistema jurídico, o poder do homem sobre os membros do clã familiar era absoluto. Na construção do Estado de Direito, reduziu-se a esfera deste poder legitimado pelo Estado, mas não se superou, em absoluto, o constructo social de desigualdade de gêneros. Assim, as relações familiares que deveriam ser pautadas pelo afeto, inúmeras vezes reproduzem degradações humanas.

É ilusório esperar que os reflexos da violência familiar sejam esgotados na própria vítima; eles “respingam” dentro dos laços familiares e no âmbito social. O feminicídio reverbera na medida em que pode gerar crianças invisíveis. Isto porque não estarão mais sob a órbita do que se conhece por poder familiar. Este, enquanto complexo de direitos e responsabilidades dos pais com relação aos filhos menores, é extinto pela maioridade, pela morte (dos pais ou dos filhos), mas também por decisão judicial.

Neste último caso, a perda se dá pelo descumprimento das atribuições inerentes à responsabilidade paterna. Enquanto sanção jurídica, faz-se possível a destituição deste vínculo jurídico, embora não se rompam em efetivo os vínculos afetivos. Os menores, como vítimas indiretas da violência doméstica, não perdem apenas os pais, como também esferas de reconhecimento e, por consequência, sua própria identidade.

Para Axel Honneth, a formação intersubjetiva da identidade humana se origina das relações de filiação, visto que o reconhecimento pelo amor entre pais e filhos é tido como pressuposto psicológico para o desenvolvimento da autoconfiança.  Na medida em que não são reconhecidas pelo amor, sofrem degradação em sua identidade e, se não são amparadas em efetivo pela sociedade e pelo Direito, por meio de políticas públicas adequadas, tornam-se invisíveis à sociedade.

Pessoas invisíveis não necessariamente sujeitam-se ao controle moral e ético da sociedade, dando ensejo à luta pelo reconhecimento, a qual pode não seguir o trâmite da legalidade. É imperioso, portanto, assumir o aspecto afetivo e psicológico, na construção do cidadão justo e democrático.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas