DIREITO DA FAMÍLIA

O peso das correntes

Lá estava ela, no banco dos réus, sob olhares e dedos moralistas apontados e cheios de julgamento. Ela protagonizava, mesmo quando não queria, a cena em quaisquer dos processos familiares. Fora pega arrastando correntes de pensamento repetidos pelos corredores da mente, sendo que às vezes se veste de remorso e às vezes de resignação. Mesmo tendo saído pela porta do divórcio, com a Emenda 66 de 2010, entrou na janela das disputas patrimoniais, pois, no fundo, a culpa é sempre a mesma – com ombros curvos e dentes trincados.

Até 2010, as ações de divórcio e disputas de guarda estavam permeadas de discussões sobre a culpa, visto que era imprescindível a demonstração da justa causa, o que resultava em verdadeiras batalhas morais e jurídicas para discutir adultério, abandono do lar ou conduta desonrosa. Era justo ao cônjuge culpado a perda de direitos, como pensão alimentícia ou em relação à guarda dos filhos.

Tal exigência de culpa estava profundamente ligada à dinâmica de poder dentro do casamento, tendo relação, inclusive, com a violência doméstica e com o feminicídio, pelo reforço à noção de posse. Ao dificultar juridicamente o divórcio, o sistema alimentava o risco, especialmente às mulheres, haja vista sua desigual relação de poder social e econômico frente ao homem – quando não está relegada apenas ao trabalho de cuidado, tem seu esforço laboral visto tão somente como complementar. 

Com a noção de felicidade dos membros familiares, a partir do que se denomina de família eudemonista, estabeleceu-se o fim da culpa, de modo que agora aquela protagonista poderia descansar em paz. Possibilitou-se o divórcio imotivado, enquanto direito de qualquer dos cônjuges, não sendo mais necessário justificar e comprovar qualquer violação dos deveres conjugais para o fim do casamento, bastando a vontade.

Contudo, quem teria direito à felicidade, principalmente com o fim do casamento? Ainda se podem ouvir resquícios das correntes pelos corredores da mente do judiciário. Embora a culpa não seja mais um critério formal nas ações familiares, ela ressoa em algumas questões – de forma moralista, tendo um peso diferenciado a depender do gênero.

Sendo a mulher a vítima de infidelidade, abandono ou violência, geralmente deve provar que não só sofreu, mas sofreu o suficiente para merecer alguma indenização. De revés, o julgamento moral sobre sua conduta é mais severo. Quando se trata de partilha de bens, por exemplo, as regras deveriam se resumir às questões objetivas, porém a comprovação do valor econômico e da extensão do esforço das mulheres esbarra na noção de “gestão natural masculina” ou na resistência judicial em reconhecer fraudes ou dilapidação do patrimônio, especialmente praticada por eles.

Em verdade, a culpa veste-se de gênero como um fardo invisível – às mulheres, é costurada à pele (para ser lembrete constante de que ela não é o sujeito normativo) enquanto aos homens não passa de sombra fugidia, rara e passageira. O erro dele é olvidável, mas o dela é imperdoável, pois a culpa não desapareceu, apenas mudou de nome e de forma para ser mais onerosa a quem foi ensinada carregar o peso do mundo.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito