Opinião

Coluna Direito da Família: Nenhuma gota de sangue

Para a execução do contrato de dívida, a personagem shakespeariana da peça teatral “O mercador de Veneza” exigiu a leitura fria das cláusulas contratuais: pode tirar o couro, mas nenhuma gota de sangue. Exigência essa que invalidava o contrato, por impossibilidade do objeto. Tal interpretação jurídica foi retratada também por Ariano Suassuna, em o “Auto da Compadecida”.

Aparentemente desconexos com o direito de família, os contratos se disseminam nesse seara jurídica, visto que a autonomia da vontade é ponto em comum entre estes institutos. Em consonância com a psicanálise, o direito reconhece o sujeito de direitos também como um sujeito de desejo.

Assim, em respeito à dignidade da pessoa humana, imprescindível se faz o respeito às individualidades e às idiossincrasias de cada sujeito, dentro de um Estado que almeja ser qualificado como democrático de direito. Respeitar e guarnecer o direito de um, contudo, não pode significar a transgressão ao direito alheio, pois ambos devem coexistir. Essa existência concomitante, portanto, necessitará de limites, ora impostos pelo Estado, ora impostos pelas partes.

No local mais íntimo de afeto dos indivíduos, a família, parece esdrúxula a interferência estatal. No entanto, o Estado é o primeiro responsável pela guarda e efetivação dos direitos dos cidadãos, a fim de acomodar as esferas individuais de direito e de tutelar os mais vulneráveis, visto que estes não têm condições de se defenderem na mesma “proporção de armas”.

Dentro, portanto, do paternalismo libertário, o Estado precisa encontrar o ponto de equilíbrio deste movimento pendular: proteger os direitos e as hipossuficiências ao mesmo tempo em que respeita a autonomia volitiva. E os indivíduos clamam, cada dia mais, por liberdade para estabelecerem suas próprias regras de convivência: sua forma de regulamentar o afeto, especialmente diante da aceitação da pluralidade familiar.

O próprio casamento, como instituição familiar mais consolidada, é uma forma de contrato: um negócio jurídico, cujo objeto é a comunhão plena de vida. Depende dos requisitos basilares do contrato, sob pena de invalidade, como agente capaz (acima dos 16 anos) e forma prescrita pela lei (daí toda ritualística obrigatória para garantia do consentimento formalizado). Mas, nem todos querem toda essa formalidade e, por isso, há a necessidade de reconhecimento jurídico da autonomia da vontade. Pululam, pois, as uniões estáveis, formalizadas ou não, mas assentadas no afeto.

Neste ínterim, surgem contratos menos comuns, como coparentalidade, em que pais querem ser pais, mas não querem reconhecimento de conjugalidade, bem como os contratos de namoro, para garantizar a inexistência de intenção de constituição familiar, ou, ainda, de cessão temporária de útero, em que se realiza contrato sobre parte do corpo humano, algo aparentemente impossível. Ganha notoriedade também a possibilidade de inclusão de cláusulas imateriais no pacto antenupcial que antes não eram imaginadas, como a definição da quantidade de relações sexuais semanais entre o casal, como cumprimento ao débito conjugal.

Os limites sobre as disposições contratuais ainda estão em período de definição, como em uma bruma, pois a fronteira certamente é fixada de forma cirúrgica, devendo se atentar para a casuística e para a convergência entre a manifestação de vontade contratual e a realidade fática. Protegem-se, assim, os indivíduos dos contratos viciados, criados para camuflar uma realidade e mitigar direitos de alguma das partes. Depende de calibragem precisa para que não se tire nenhuma gota de sangue não pactuada.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas